1917-2017
CENTENÁRIO DE CÂMARA TORRES
CENTENÁRIO DE CÂMARA TORRES
José Augusto da Câmara
Torres
(* Caicó, RN, 1917 – † Niterói, RJ,
1998)
Jornalista, Educador, Advogado,
Político
PORQUE CELEBRAR
O CENTENÁRIO DE NASCIMENTO
DE CÂMARA TORRES
“Há homens que lutam por um dia, e
esses são bons;
há homens que lutam por um ano, e
esses são melhores;
há aqueles que lutam por muitos anos,
e esses são muito bons;
Porém há os que lutam por toda a
vida: estes são os imprescindíveis.”
Bertold Brecht
(1898-1956)
O centenário de uma
personalidade, importante para a História, para a Vida Social e a Cidadania
Política de uma Comunidade, de um Estado, de um País, constitui uma Efeméride.
Uma data digna de celebrações, registros, reflexões, participações, colaborações,
sobre o lugar e a contribuição deste Homem para o seu Tempo. Celebrar a sua
vida e a sua obra significa atualizar os valores positivos e enriquecedores do
Bem, da Justiça e da Democracia, da Liberdade, da Fraternidade e da Solidariedade, nos quais ele cria,
praticava e difundia. Assim estaremos renovando, fazendo contemporâneos, recriando
e, especialmente, cultuando um patrimônio de dons e dotes que ele semeou, com
fé e amor, e que frutificaram entre os seus contemporâneos, entre os que
tiveram a ventura de conviver com a sua notável e doce pessoa, sua reta e
afirmativa conduta, seus notáveis feitos, seu integérrimo e inquebrantável
caráter. E, mais ainda, apreendendo esse patrimônio de ideias, de pensamento,
de atitudes dignas, edificantes, enriquecedoras, que honram e enobrecem as searas
públicas que militou: o Jornalismo, o Magistério, a Advocacia, a Política. Em
todas se comportou como um estudante e praticante da Ciência e um apóstolo da
Vida e do Bem.
José Augusto da Câmara Torres, o “Câmara Torres”, o “Doutor
Câmara”, o “Doutor José”, o “Câmara”; ou o “Zé Augusto” como o tratava sua namorada, mulher, mãe dos seus
filhos, conselheira, secretária, companheira da vida inteira, a Professora
Gertrudes Nóbrega da Câmara Torres, a Dona Tudinha,
e, também, os seus amigos de infância e juventude – foi um desses homens
especiais, raros, um ser elevado e simples, erudito e popular, culto e
humilde, “um coração com pernas”, como definiu um lavrador de Rio Claro; ou “o amigo certo das horas incertas”, como
o qualificou um paratyense; ou “uma alma
irmã, limpa e generosa”, como repetia sempre um famoso pescador da Ilha Grande,
de Angra dos Reis. Para os que o conheceram e com ele conviveram, um
verdadeiro, precioso e produtivo Homem Público que fez dos seus ofícios
profissionais de Jornalista, Educador, Advogado e Político, criações e atos de
vida, de construção, de trabalho, sempre preocupado com a felicidade, o
bem-estar, do outro, do próximo, seja ele seu eleitor ou não, admirador, desconhecido,
correligionário, leitor, cliente, amigo, adversário ou concorrente, em qualquer
campo de atividade. E, acima deste ou daquele, perseguia, sempre, o entendimento, a harmonia da
coletividade, da comunidade a que servia. Câmara Torres foi um Político, na
mais alta acepção civilizatória, que levou ao extremo a ciência, a técnica, a arte,
a sua capacidade de compreender e realizar, de servir, de jamais ser servido ou
privilegiado ou recompensado pelo que não merecia; que radicalizou, com
sabedoria, carisma e liderança, a sua virtude de doação, retidão e fidelidade
aos seus representados, na busca do crescimento humano, socioeconômico e
cultural das comunidades, onde estava integrado.
Eu acredito que todo filho
deveria fazer o que estou fazendo, seja quem tenha sido o seu pai. Não importa se seu
pai tenha sido Presidente da República, um operário, um diplomata, um modesto
servidor público, um grande empresário, um biscateiro, um bancário, um
comerciante, um artista, um professor, um amolador de facas, um ajudante de pedreiro. Considero
importante o registro para a honra, a autoestima, a História da Família, da
cidade, da comunidade, do País. Mesmo que o assento não passe de uma página de
caderno escolar.
Para mim, Marcelo, seu filho, o
quarto de sua descendência e o varão mais velho, ele foi um Homem, um
progenitor, um educador, além da paternidade e da consanguinidade, muito mais
que o maior da galeria dos Homens Públicos que conheci. Esteve acima de todas
as suas admiráveis virtudes e naturais pecados. Certa vez, escrevi e proclamei:
“Meu
pai foi meu primeiro mestre, essencial, precípuo, permanente, vital. Durante
toda a sua existência. Exemplo de vida, exemplo de homem. Imperfeito, falível.
Princípio, valor, sêmen, luzeiro. Referência para viver, para ser homem.
Divergimos, muitas vezes, nas circunstâncias, ao nível conjuntural, opiniático,
secundário, periférico, metodológico. Convergíamos nos valores, nos princípios,
nos fundamentos, nas razões e causas últimas das cousas. Éramos semelhantes e
diferentes. Eu era seu filho. Eu sou seu filho”.
Marcelo Câmara
(Marcelo Nóbrega da Câmara Torres)
Jornalista, historiador, escritor,
editor, consultor cultural e empresarial.
CÂMARA TORRES,
UMA VIDA INTEIRA DE
IDEIAS E OBRAS:
ESTUDO, TRABALHO,
DOAÇÃO, SERVIÇO.
CÂMARA
TORRES: UM HOMEM PÚBLICO (*)
Marcelo Câmara
(...................................................)
O dístico “Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Norte” me soa aos ouvidos desde a infância. Primeiro, no lar
dos meus avós paternos, José Antunes Torres, nascido em Touros, e Maria da
Câmara Torres, de Santana do Matos, ouvia sempre, não a entidade, mas os nomes
dos vultos, em outros contextos sociais, que iluminaram esta Casa: Pedro Velho,
Alberto Maranhão, Juvenal Lamartine, Ferreira Chaves, Vicente de Lemos, João
Avelino, Francisco Carlos Pinheiro da Câmara, Tavares de Lyra. Depois, na casa de
meus pais, os caicoenses José Augusto da Câmara Torres e Gertrudes Nóbrega da
Câmara Torres, alguns desses nomes se repetiam e outros estreavam na minha
memória: José Augusto Bezerra de Medeiros, Nestor Lima – o “Presidente
Perpétuo”, Aluízio Alves, primo distante de meu pai, Eloy de Souza, Manoel
Rodrigues de Melo, Nilo Pereira, Veríssimo de Mello.
Luís
da Câmara Cascudo, o homem, o gênio, era o mestre quase cotidiano, a leitura
recorrente, o mais ilustre da nossa família, que meu pai conheceu na infância,
com quem esteve durante toda a vida, com quem dialogava e a quem venerava desde
menino.
Minha mãe foi sua aluna na Escola Normal de
Natal. Contava que quando o Professor Cascudinho falava ao ar livre, se a chuva
caísse, ninguém arredava pé. Com Câmara Cascudo, meu pai e eu nos
correspondíamos sem frequência, porém até os tempos que antecederam a partida
do maior dos potiguares. Não tive a graça de estar com ele pessoalmente. Assinava
cartas e cartões a meu pai assim: “seu fiel admirador”, “seu veterano
admirador”. Certa vez, depois de ler um trabalho meu de Folclore, escreveu a
meu pai: “... movimento, cor,
comunicação, simpatia. De tal roseira, tal flor”. A mim se dirigia desta
forma: “Marcelo Câmara, jovem confrade de
vanguarda” ou “jovem colega Marcelo
Câmara”. E arrematava: “afetuosamente,
seu admirador legítimo, Luís da Câmara Cascudo”.
Meus três mestres na maioridade biológica e
nos primeiros cometimentos como jornalista e escritor: Luís da Câmara Cascudo,
Mário Quintana e Nelson Rodrigues. Três humanistas inteiriços a me dizerem da
vida, do homem e do mundo. Cascudo, o doutor em povo, o gênio que descobriu o
Brasil; Quintana, o poeta de todas as coisas; Nelson, o dramaturgo do cotidiano
e da paixão. Depois, vieram se somar ao trio, Gilberto Freyre, autor da
primeira e mais valiosa sociologia sobre o Brasil; Rubem Braga, o maior
prosador da Língua Portuguesa do Século XX; e Darcy Ribeiro, o antropólogo que
amava o Brasil. Cascudo, Quintana e Nelson: o conhecimento da alma e dos gestos
humanos através do próprio homem, sua pequenez e continência, seus desejos e
seus vôos, seus imponderáveis e erráticos caminhos. Aos três dediquei meu livro
de estréia, editado, pela primeira vez, em 1985: Crítica à Cultura Brasileira – uma reflexão
sobre manifestações e universos culturais na sociedade brasileira. O que mais me fascina em Cascudo não são somente
os temas do homem e das gentes, suas raízes, motivos, formas e trajetos, que a
tudo ultrapassa e transcende.
Fantástica, espantosa mesmo, é a escritura
cascudiana: uma linguagem artística, literária, uma dicção muitas vezes
poética, outras com humor, fazendo ciência, que pensa, cogita e enuncia, gera
conhecimento, conhece o real. Isto parece paradoxal, quando se sabe que a
linguagem da ciência não prescinde da exatidão, da precisão, da concisão, da
objetividade, da clareza.
Cascudo faz ciência com estilo solar,
primoroso, raríssimo, sem se valer da linguagem fria e árida do texto técnico e
científico. Utilizando-se naturalmente da metáfora e de outros recursos da
linguagem literária, da prosa elevada, da linguagem poética, sugerindo e
provocando a dúvida, a reflexão e o sonho – Cascudo é correto, é preciso, é
claro, é exato, é real, é científico, é verdadeiro, dando auto-crivo
epistemológico a cada descrição, a cada análise, a cada crítica, a cada
assertiva.
Discurso simultaneamente denso e delicioso,
seminal e fascinante, que faz uma cabal inteligência, profunda, das atitudes e
fatos humanos, dos fenômenos e processos antropossociais, históricos,
políticos, econômicos. Poucos cientistas foram artistas como Cascudo, o texto
belo e perfeito, um texto de ciência que enuncia e emociona, expressa e
explica, significado e significante na unidade que diz e convence. Lembro-me de
poucos que podem se aproximar dele. Entre nós, talvez Gilberto Freyre, Anísio
Teixeira. Mais contemporâneos, um Darcy Ribeiro. Nos textos técnicos, o genial
arquiteto Lúcio Costa, um belo texto. No exterior, os escritos filosóficos de
Maritain e de Sartre.
(....................................................)
Num passeio de olhos pelos anais do
Instituto, além de Luís da Câmara Cascudo, vislumbro muitos varões da árvore
dos Câmara, todos descendentes do Tenente Manoel Raposo da Câmara, morgado
português da Ilha de São Miguel, do Açores, que aqui chegou no início do Século
XVIII e se casou com uma natalense: o Sócio-Fundador Francisco Carlos Pinheiro
da Câmara, Anfilóquio Carlos Soares da Câmara, Adaucto Miranda Raposo da
Câmara, meu tio-avô Aprígio Soares da Câmara, meu pai, José Augusto da Câmara
Torres. Das greis dos Nóbrega e dos Torres, outros, certamente, tiveram
aqui assento.
Meu tio-avô, Aprígio Câmara, natural de
Santana do Matos, onde hoje é nome de rua, foi Sócio Correspondente do
Instituto. Lecionou no Rio Grande do Norte e na Paraíba. Foi diretor da Escola
Normal de Mossoró em 1925. Ainda jovem, migrou para São Paulo, onde também
ensinou e se bacharelou em Direito. Tornou-se um dos maiores advogados
brasileiros, com grande prestígio na elite paulistana. Foi amigo muito próximo
de Olegário Mariano e de outros intelectuais e artistas paulistas. Aprígio
Câmara e Câmara Cascudo foram grandes amigos, fraternais, próximos.
Corresponderam-se dos anos 1940 aos anos 1960. Guardo cartas nas quais Cascudo
o trata de “querido primo”. Em outras, leio os tratamentos: “Aprígio
magnificente”, ”Meu coração”, “Conde da Câmara, Grande Primo!” e até um
inusitado “Minha Flor”, que Cascudo explica a Aprígio: “Você é a única flor
masculina”. Aprígio viabilizou uma das viagens de Cascudo Portugal e África,
dando-lhe o apoio de amigos que tinha nos dois continentes.
(.....................................................)
Ilustres
consócios, minhas senhoras, meus senhores, para saudar o aniversário desta
insigne Casa de Labor e de Beleza, ilustres
consócios, minhas senhoras, meus senhores, para saudar o aniversário do
Instituto, venho, no meu ingresso como Sócio-Correspondente, evocar o nome e a
memória de um homem público, que, por toda a vida, encarnou o espírito que
alimenta e conduz esta entidade, e pelo qual ela se reconhece e se justifica: a
liberdade de pensamento e de expressão, o livre e universal acesso à Cultura, o
serviço à comunidade. Venho, nesta noite festiva, evocar a memória, a
trajetória, o pensamento e a obra, de um verdadeiro Homem Público: Câmara Torres, jornalista, educador,
advogado e político, Sócio Correspondente deste sodalício, falecido em 1998.
Meu pai. Meu pai que foi meu primeiro mestre, essencial, precípuo, permanente,
vital. Durante toda a vida. Exemplo de vida, exemplo de homem. Imperfeito,
falível. Princípio, valor, sêmen, luzeiro. Referência para viver, para ser
homem. Divergimos, muitas vezes, nas circunstâncias, ao nível conjuntural,
opiniático, secundário, periférico, metodológico. Convergíamos nos valores, nos
princípios, nos fundamentos, nas razões e causas últimas das cousas. Éramos
semelhantes e diferentes. Eu era seu filho. Eu sou seu filho.
Venho
vos falar de um Homem Público, o caicoense José Augusto da Câmara Torres. Mas
não cinjo o conceito de “homem público” àquele que, apenas e ocasionalmente,
ocupa cargo ou função no Estado. Seria reduzir a dimensão de um verdadeiro
Homem Público, no seu real significado sociológico e político. Falo do cidadão
que faz da sua vida, da sua existência, uma missão, um dever para o outro, um
trabalho para os outros, um contínuo construir para o povo, para a sociedade.
Ora como líder, ideólogo e propagador de idéias, causas e condutas, ora como
seu representante e defensor, em quaisquer fóruns, com ou sem mandato formal.
Um servidor das gentes, um promotor, um arregimentador do Bem e da Paz, da
Harmonia e da Felicidade coletiva. Um Homem Público tem uma Vida Pública, vida
operosa, participativa, transparente, por todos repartida, acompanhada,
fiscalizada, julgada cotidianamente. Vida pública significa consciência,
responsabilidade, serviço, doação, construção.
Venho vos falar de José Augusto, um menino
pobre, nascido no Caicó a 22 de junho de 1917, o terceiro do casamento do
telegrafista José com a dona de casa Maria, chamada Liquinha. Em março de 1917, o casal muda de Angicos para o Seridó,
pois o pai, José Antunes Torres, recebera o encargo de instalar e inaugurar a
estação dos Correios e Telégrafos do Caicó. Magro, esquálido, mirradinho, José
Augusto era um milagre, sobrevivente de uma prole de nove filhos, dos quais somente
três vingariam. Os outros seis falecem recém-nascidos, dias após os partos de
Dona Liquinha. O nome “José Augusto” foi uma homenagem ao líder caicoense José
Augusto Bezerra de Medeiros, então Deputado Federal.
O Doutor Joaquim Ferreira Chaves, à época o
político de maior prestígio popular no Estado, um dos fundadores desta Casa, e
sua mulher Alexandrina, foram os padrinhos de José Augusto na cerimônia na
Matriz de Caicó, representado pelo Coronel Celso Dantas, homem que levou o
cinema falado para Caicó em 1936. Os mesmos padrinhos de Câmara Cascudo.
Como
aquele menino pequeno e frágil, num lar rude e pobre, com adversidades de toda
ordem, como veremos, um menino que vai para a escola somente aos nove anos de
idade, revela-se, precocemente, uma inteligência produtiva, um talento para as
letras, a oratória e o jornalismo, uma liderança política, um homem público
ainda na puberdade?
Por quais sendas, qual poderosa fé, que
ideais santos, que sagas transformam aquele sertanejozinho míope e sem
protetores na selva fluminense e carioca, oprimido por uma educação familiar
severíssima, numa das mais brilhantes personalidades da vida cultural e
política do Estado do Rio de Janeiro no Século XX?
Com dez anos de idade, José Augusto ingressa
no 1º ano elementar do Grupo Escolar Senador Guerra. Três anos depois, estava
no 1º ano do Curso Complementar na mesma escola. O interesse do menino pela
História e pela Política manifesta-se desde então. No dia 3 de maio de 1930,
aos doze anos, José Augusto faz o primeiro discurso. Na escola, num texto
crítico e ousado questiona, com dados e argumento, a data, então celebrada como
sendo a do Descobrimento do Brasil. Contesta-a e afirma o 22 de abril como a
“data verdadeira” da chegada de Cabral. Na oportunidade, também, faz uma convocação
ecológica em defesa das árvores e das nossas “riquezas naturais”. Comemorava-se
o “Dia da Natureza”. Ali, Ilustres Confreiras e Confrades, começa a vida
pública de Câmara Torres. O menino se lança à comunidade escolar como um
representante, um arauto, um símbolo dos seus colegas. A crítica, os anseios, a
voz. E, ao longo de 1930, 31 e 32, surgem outras orações do garoto franzino,
magérrimo, loquaz, elétrico, que surpreendia a todos pela inteligência,
iniciativa, dinamismo. José Augusto tornara-se o orador oficial da escola em
todas as cerimônias cívicas, sociais e culturais. A oração do Dia da Bandeira,
de formatura dos complementaristas, foi feita na presença do Professor Nestor
Lima, então Chefe da Instrução Pública. As orações do menino eram críticas,
arrojadas, políticas, convocando a todos para a reflexão, a mobilização dos
espíritos e das ações.
Dois
fatos, creio, ratificam e formalizam o início da vida pública de Câmara Torres,
ainda na infância. O primeiro fato: um ano após o primeiro discurso, José
Augusto, com treze anos, funda O Ideal da
Juventude, jornal mensal, literário e noticioso, “órgão dos interesses do
Grupo Escolar Senador Guerra”, dirigido ao povo de Caicó, que o menino passa a
dirigir e onde assina os editoriais, artigos de fundo e reportagens. O segundo
fato: no final de 1931 quando o Interventor Hercolino Cascardo visita Caicó,
quem irá saudá-lo, em nome da infância estudiosa e da mocidade das escolas do
município, será aquele menino jornalista, que escreve e discursa, um agitador
político, um animador cultural.
Nesse dia, José Augusto prova vinho pela
primeira vez. Entretanto, o emblemático da saudação a Cascardo é o fato de o
menino não ler um texto de sua autoria, mas do Doutor Renato Celso Dantas, um
importante advogado da cidade. Observem, prezados confreiras e confrades,
minhas senhoras, meus senhores, ele fora escolhido para ler a oração em nome de
todos, uma oração da comunidade que, ao contrário de outras, não fora escrita
por ele.
O
Ideal da Juventude, depois
do terceiro número, lança uma revista especial o 26 de Julho para celebrar, nessa data, o primeiro ano da morte de
João Pessoa. E, ainda na terceira edição assume a secretaria do jornal
Gertrudes Nóbrega, a Tudinha, de
tradicionalíssimo clã seridoense, moça que, dez anos depois, se casará com o
diretor José Augusto Torres. (O “Câmara”, da mãe, ele agregará ao nome na
maioridade). O número 7 de O Ideal da
Juventude, de 19 de novembro de 1931, traz, na primeira página, um belo
texto de Luís da Câmara Cascudo sobre o Senador Guerra, Francisco de Brito
Guerra, patrono do Grupo Escolar. Cascudo escreve o trabalho a pedido de José
Augusto e adverte: “Esta crônica é de
propriedade do O Ideal da Juventude, a quem ofereço os meus direitos autorais”.
Começava aí uma amizade de mais de sessenta anos. Dez números são editados de O Ideal da Juventude. O último circula
em 11 de fevereiro de 1932, com a notícia da ida de José Augusto para Natal,
onde, dizia a notícia, “vai continuar os
seus estudos”.
Em fevereiro de 1932, com quatorze anos,
José Augusto é matriculado como aluno interno no 1º ano ginasial do Colégio
Santo Antônio, dos Irmãos Maristas. Na sua turma, Eugênio de Araújo Sales, de
Acari, hoje Cardeal Emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro, que então
anunciava: “Eu vou ser padre, eu quero ser padre”; e o natalense Túlio Tavares,
músico, colega de Oriano de Almeida, e irmão do grande maestro e compositor
Mário Tavares. O destino fez com que eu e o Túlio, colega de classe de meu pai,
nos conhecêssemos em Brasília, nos anos de 1970, e fôssemos, juntos, assessores
do Ministro do Trabalho. O menino do interior chega a Natal, vê gelo pela
primeira vez e logo se destaca: é o orador na inauguração da praça de esportes
do colégio e, em setembro, ele está na primeira página do terceiro número do O Sete de Setembro, jornal anual do
colégio, assinando o principal artigo. Fala, ainda, em nome dos internos, antes
da disputa de um jogo de futebol e nas comemorações da Proclamação da
República.
Na
véspera do Natal de 1932, a família embarca para o Rio de Janeiro. No dia 30 de
dezembro de 1932, às 8 horas da manhã, José Augusto pisa com o pé direito no
solo carioca, rompendo pelo Armazém 7 do Cais do Porto. Vai morar em Niterói.
Em março, ele está matriculado como aluno externo no segundo ano ginasial do
Colégio Salesiano Santa Rosa e, em junho, ainda com quinze anos, funda e passa
a dirigir o jornal Espumas, com a
colaboração de Dayl de Almeida, que dele irá se tornar o “irmão xifópago”.
Dayl, depois, será professor, sociólogo, deputado estadual e federal. O
jornal Espumas mudou o nome para A Ordem em 1937 e circulou até fevereiro
de 1938. Foi um jornal político, católico, nacionalista, que se engajou no
movimento Integralista, constituindo-se no primeiro e mais importante veículo
do gênero, e o de mais longa vida no Estado do Rio de Janeiro.
De 1933 a 1943, no Colégio Santa Rosa, no
Curso Preparatório de Direito no Liceu Nilo Peçanha e na Faculdade de Direito
de Niterói, Câmara Torres se destacou numa geração inteira de jovens
fluminenses, católicos e nacionalistas, que viriam a ser, depois, ilustres
personalidades da história política e cultural do Rio de Janeiro. Eram anos de
efervescência intelectual, idealismo e ideologização entre liberais, comunistas
e fascistas, movimentos religiosos, militância política. Câmara Torres funda e
preside por cinco mandatos a Academia São Francisco de Sales, braço cultural da
Congregação Mariana Nossa Senhora Auxiliadora, do Colégio Salesiano Santa Rosa,
a que pertence. Palestras, conferências, discursos, debates, em vários fóruns
literários, culturais, políticos, no Rio e em outros Estados. Ao seu lado, além
de Dayl, líderes católicos, intelectuais como Alceu de Amoroso Lima, o Tristão
de Athayde.
Em 1939, o acadêmico de Direito José Augusto
da Câmara Torres começa a lecionar Português, Literatura Brasileira e Portuguesa,
História do Brasil e História da Civilização em Niterói, José Augusto está na
Associação Potiguar, no Rio, ao lado de Edílson Cid Varela, publicando na Revista Potiguar, artigos sobre a sua
terra. Publica também em Caicó. Mas, antes, em 1936 e 1937, volta ao Rio Grande
do Norte, a Natal, Baixa Verde, Touros e a Caicó, viagens sentimentais, para
abraçar parentes e amigos, e, claro, ver Tudinha
Nóbrega, a menina do Grupo Escolar, sua secretária do jornal O Ideal da Juventude, moça que,
pressentia, seria a escolhida do seu coração. É agraciado com duas
condecorações: a Medalha do Cinqüentenário da República e a Medalha do
Centenário de Sylvio Roméro, ambas em virtude de conferências que profere e de
comemorações que promove.
1940 é um ano de decisões para o
universitário José Augusto. Leciona, escreve em vários jornais e revistas. Em
junho, chega às livrarias de todo o País, Imortais,
o seu primeiro livro, com Dayl de Almeida, uma reunião de conferências dos dois
sobre temas da História, Literatura, Política e Religião. O leitor da editora
que autoriza a publicação é o grande José Cândido de Carvalho. A obra foi muito
bem recebida pela intelectualidade e pela crítica de então. Câmara Cascudo na
sua Acta diurna, de A República, escreve:
“José Augusto da Câmara Torres, que conheci
recém-saído dos cueiros, começou a escrever numa idade em que a curuja de
papel é a suprema tentação. Dirigiu
jornais no Caicó, tendo a metade do tamanho de qualquer tipógrafo. Nasceu com a
paixão do livro, a sedução espiritual do pensamento, em suas formas mais belas,
nobres e altas. (...) Há (nele) todos
os elementos para um Historiador cuidadoso, equilibrado, dispensando comodismos
e guizos, pisando, com lentidão e autoridade, o caminho áspero e maravilhoso
que leva o Homem para todas as dimensões de sua atividade no mundo.”
Em abril de 1941, envia à Gertrudes Nóbrega
no Caicó, uma obra literária de sua autoria da qual foi editado um único
exemplar, encadernado, com 45 páginas: O
poema do meu amor, vinte poemas em prosa para Tudinha, por causa de Tudinha,
cuja musa é Tudinha. Volta ao Caicó
em dezembro de 1939 para ficar noivo e pedi-la em casamento. É nomeado redator
do Serviço de Propaganda e Turismo do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Em
dezembro de 1941, casa com Tudinha
Nóbrega em Caicó e vai morar em Niterói.
1942 marca uma nova fase da vida pública de Câmara Torres. Designado Técnico
de Educação do Estado, o então professor e acadêmico de Direito vai chefiar a
1ª Região Escolar, com sede em Angra dos Reis, no Extremo Sul do Estado,
abrangendo este município, Paraty, Mangaratiba e Rio Claro. Efetiva-se no cargo
através de concurso público de provas e títulos, com defesa de tese, oral e
escrita.
Em 1943, forma-se em Direito e vai residir em Angra dos Reis, com a
mulher e a primeira filha, recém-nascida. Angra dos Reis, a região era o
castigo dos Inspetores de Ensino, isolada do resto Estado, longínqua, sem
estradas, sem comunicações, com pouquíssimas escolas funcionando precariamente
em imóveis alugados, mínimos e deficientes serviços públicos essenciais. A
malária grassava impune em toda a região. Câmara Torres era o primeiro Inspetor
com a coragem de residir em Angra. Cria, constrói, instala, amplia, moderniza
toda a rede pública de ensino na região. Nunca o ensino público na região
atingiu níveis tão altos de qualidade e eficácia. Darcy Ribeiro, após ler um
trabalho que publiquei sobre a obra de meu pai na Educação Pública, exclamou: “Ele foi um Anísio Teixeira do Sul Fluminense”.
Ao tempo que se dedica à Educação Pública,
Câmara Torres advoga e é jornalista na região. Prossegue produzindo e
publicando artigos e ensaios de Literatura, História, Política, Educação, entre
eles, a crônica única e preciosa, Um fim
de vida, publicada em 1952 na revista Bando,
da Casa Euclides da Cunha, de Natal, sobre a morte do grande Alberto Maranhão,
ocorrida em Angra dos Reis em 1944, quando Alberto editava um jornal, plantava
banana e fabricava cachaça em Paraty.
Em
1945, com a redemocratização do País, Câmara Torres ingressa na política. Em
1954, se candidata e se elege, pela primeira vez, Deputado à Assembléia
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. A vida pública, a sua militância
política começara na infância. Agora, o mandato popular, resultado de eleições,
representante prioritariamente do povo do sul do Estado do Rio de Janeiro. Até
aqui, o jornalista, o educador, o advogado. Agora, também o dirigente e
militante partidário, o parlamentar, o legislador. Foram quatro mandatos de
Deputado Estadual, até 1971, votações crescentes, liderança social, política,
incontestável, consagrada por mais de trinta anos, que fizeram dele “o maior e
mais importante político da região do extremo sul fluminense no Século XX”.
Recebeu dos sul-fluminenses votações maciças, que chegaram a
ultrapassar, em certas eleições, 80 por cento dos votos válidos de determinados
municípios. A casa de Câmara Torres, primeiro em Angra, depois em Niterói,
sempre foi uma "embaixada" da região, aberta a gentes de todas as
classes sociais e cores políticas.
Fidelíssimo às comunidades que o elegiam
dedicou ao Estado do Rio de Janeiro, com elevada dignidade e correção, mais de
sessenta anos de vida pública. Como Deputado, legislou intensa e
continuadamente, pugnando pelo ensino público de qualidade e pela valorização
dos professores. Até a sua morte, foi "o
deputado das professoras", "o político da educação pública",
um batalhador por condições dignas de trabalho para os profissionais da
educação. O parlamentar Câmara Torres atuou e legislou destacadamente na área
social, em favor da região que representava, especialmente na Educação,
Cultura, Saúde, Saneamento, Transportes, Energia, Telecomunicações, Justiça,
Segurança, Turismo e Ecologia. Da sua chegada à região em 1942, até os anos de
1980, não houve iniciativa ou conquista, pública ou privada, que beneficiasse o
povo da região sul fluminense, que não contasse com a sua ação política, a sua liderança
ou participação decisiva. Hoje, a região é um dos mais importantes pólos
econômicos e turísticos do País. Câmara Torres foi o estruturador de toda essa
realidade de desenvolvimento sócio-econômico e cultural.
Cristão, solidário, generoso, Câmara Torres jamais deixou de ouvir ou
atender qualquer um do povo que o procurasse, fosse ou não seu eleitor ou
amigo. Na política, teve adversários, jamais inimigos. Na advocacia,
contendores que o admiraram, nunca debatedores odientos. Ocupou as Secretarias
de Estado do Interior e Justiça e de Serviços Sociais, e foi membro do Conselho
Estadual de Educação.
Em 1970, ao término do seu último mandato, pagava o financiamento da
casa que residia com a família, não possuía patrimônio, porém muitas dívidas e
oito filhos, cinco deles nascidos em Angra dos Reis. Considerado um dos maiores
especialistas e executivos em Educação, aposentou-se como Consultor Técnico de
Educação. Causídico por mais de cinqüenta anos, era considerado um dos mais
brilhantes advogados do País, destacadamente no campo do Direito Civil.
De
1931 até a sua partida em 1998, portanto, durante sessenta e sete anos
ininterruptos, Câmara Torres publica, na Imprensa fluminense, carioca e
potiguar, em jornais, revistas técnicas e literárias, centenas de artigos,
reportagens e ensaios sobre a nossa realidade social, política, econômica e
cultural. Política, História, Educação, Geografia, Direito, Administração,
Literatura, Religião e Folclore. Muitos textos sobre o Rio Grande do Norte. E
mais: crítica literária, de cinema e de teatro; crônica, conto e poesia.
Prefacia obras de História, Literatura e Política. Pronuncia centenas de
conferências, orações acadêmicas, de paraninfo e discursos no Rio de Janeiro,
Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Norte. Após o casamento em Caicó,
Câmara Torres retorna apenas três vezes a Natal e a Caicó: em 1965, em 1976 e
em 1984. Em uma delas, leva à Municipalidade o brasão de Caicó, iniciativa sua,
obra do seu amigo, o heraldista Alberto Lima.
Criou e presidiu a Ordem dos Advogados do Brasil em Angra dos Reis e criou as de Paraty, Rio Claro e Mangaratiba. Pertencia à Academia Valenciana de Letras, à Associação
Brasileira de Escritores e ao Instituto Histórico e Artístico de Paraty, do
qual é um dos fundadores. Era Sócio Correspondente deste Instituto e do Ateneu Angrense
de Letras e Artes. Possuía os títulos de Cidadão
Fluminense do antigo Estado do Rio de Janeiro, de Cidadão Honorário do Estado do Rio de Janeiro do atual Estado do
Rio de Janeiro e cidadania de cinco municípios fluminenses. Foi, enfim, um
importante e luminoso personagem da Educação, da Cultura, da Política
Fluminense nos últimos sessenta anos do século XX. Morreu pobre, sem bens
patrimoniais a inventariar, com o risco de perder a casa em que morava, em
virtude de ter sido avalista de dívida alheia. Deixou para seus filhos e a
geração que o sucedeu um legado moral de idéias e obras, de honra e probidade.
Câmara Torres é visto por correligionários e adversários políticos, como "uma legenda moral de probidade e
trabalho, de doação às causas populares, que fazia dele um homem público por
excelência, honrado, leal, destemido e produtivo, com inestimáveis serviços
prestados ao Estado do Rio de Janeiro". Os cientistas políticos
poderão ver Câmara Torres como "um
verdadeiro homem público, integérrimo no caráter e nas ações, com uma
inexcedível capacidade de doação, um cidadão e um político com uma dimensão
humana e social insuperável". Angra dos Reis homenageou a sua memória
com o Teatro Municipal Câmara Torres. Paraty com a Casa de Cultura Câmara
Torres. Em 2011, o município de Rio Claro, RJ, inaugurou, em Passa Três,
a sua mais moderna e bem equipada escola, o CENTRO DE ENSINO MUNICIPAL DEPUTADO
CÂMARA TORRES, construído com recursos da União (Fundo
de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação – FUNDEB). O Aeroporto de Angra dos Reis, RJ,
construído no início dos anos 1950 por Câmara Torres, com recursos próprios,
passará a se chamar, em breve, AEROPORTO CÂMARA TORRES. Mangaratiba e Niterói se preparam para celebrá-lo.
Prezadas Confreiras, estimados confrades,
minhas senhoras e meus senhores, Persiste, afinal, a minha indagação
vestibular:
Como
aquele menino pobre, frágil, oprimido, do Caicó, se transformou num grande
Homem do Estado do Rio de Janeiro? Eu vos respondo com algumas palavras de
significado: fé, coragem, amor, estudo, talento, doação, trabalho. Câmara
Torres provou o adágio de Polydoro: O
homem probo tudo faz honestamente. E viveu a sentença de Cícero: O homem não nasceu só para si, mas para a
pátria, mas para os seus.
Câmara Torres fez do Bem e da Justiça um
dever, uma arte, uma vida. Muito lhe deve o Estado do Rio de Janeiro. Construiu
o seu tempo, é orgulho dos seus filhos, honrou o Rio Grande do Norte. MUITO
OBRIGADO.
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