Tendo o mestre como aluno: Zarattini faz, em 2011, um dos Cursos de Formação de Degustador que ministrei em Ipanema, Rio. (Foto: Bruno Lira) |
Nascida casualmente em 1532 na Vila
de São Vicente, hoje município de Santos, inventada pelo colonizador português
Martim Afonso de Souza, seu irmão Pedro Lopes de Souza, e mais três portugueses
– a nossa Cachaça, nesses quase quinhentos anos de vida, injusta criminalização e
heroísmo, preserva, praticamente, as mesmas normas e procedimentos artesanais do
Século XVI no seu processo de fabricação, da moagem da cana-de-açúcar à sua
guarda (hoje, engarrafamento), passando pela fermentação e a destilação. Avançaram,
é verdade, ou melhor, até se confirmaram, e muito, através da Ciência e da
Tecnologia, o variado conhecimento, a sabedoria empírica sobre estas duas últimas fases. Mas
nada de revolucionário, sucedâneo ao que se estabeleceu como princípios e
fundamentos na terceira década da centúria dos Quinhentos. Descobriu-se a
estrutura da bebida, seus elementos foram identificados e classificados, é
verdade. Criaram-se materiais e condutas secundárias, complementares, que
aperfeiçoaram significativamente a qualidade química e sensorial da bebida.
Isto porque fermentação e destilação são processos que existem, espontânea e
aleatoriamente, na natureza, são fenômenos biológicos, físicos e químicos, dos
quais o homem se apropriou, passou a dominá-los e os utiliza, mesmo que, de
início, precária e empiricamente, na fabricação de bebidas com álcool desde séculos
antes de Cristo.
A Cachaça foi um milagre brasileiro, acontecido
na terra recém-descoberta. A gramínea perene, de colmos (saccharum officinarum), o caldo da cana (garapa), o açúcar, o
melaço, o melado, a rapadura, o alambique, a fermentação e o destilo – tudo
isto já existia muito antes de Martim Afonso experimentar o melaço (provável
matéria-prima), um subproduto da fabricação do açúcar, para obter a aguardente
de cana-de-açúcar, então chamada de “aguardente da terra”, depois “jeribita” e,
finalmente, “Cachaça”, a bebida brasileira, desenvolvida e regulamentada no
Século XX, até chegar ao produto brasileiro, tal qual hoje conhecemos: uma
denominação geográfica. E por que os portugueses não inventaram a Cachaça em
Portugal se, no Minho, existiam canaviais no Séc. XV e se fabricava a
bagaceira? Se, nos Açores e na Madeira, havia plantações, alambiques e
bagaceiras, por que nesses arquipélagos não surgiu a Cachaça antes dos portugueses
se radicarem e a inventarem aqui? Ninguém sabe até hoje porque a Cachaça não
nasceu em Portugal ou nas colônias lusas em África. Daí a Cachaça, um milagre
brasileiro.
Dizia que são importantes, mas pontuais,
raríssimos, os avanços científicos e tecnológicos na produção da Cachaça. Depois
do químico e professor mineiro João Manso Pereira
(1750?-1820), certamente o nosso primeiro cachaçólogo e cientista da bebida, que
criticou o cobre como material do alambique; do surgimento das normas de análise
química e rotulagem em 1930; e da Identificação Geográfica e Denominação de Origem da Cachaça em 2001 – acredito que nada mais ocorreu de relevante
no universo da pinga.
Porém, hoje, aos
primeiros raios de 2017, uma vanguarda se efetiva: Ricardo Zarattini.
OUSADIA – Pesquisador e Consultor de Produção de
Destilados, Ricardo Zarattini (Ricardo de
Albuquerque Zarattini) é um estudioso de rara inteligência, disciplina
prussiana, perseverança incansável, notável criatividade, ousadia e capacidade
inventiva. Cientista e tecnólogo obstinado, apaixonado pelo seu ofício, Ricardo
é o pioneiro no Brasil na aplicação do processo Flash Ferm, a Destilação a Vácuo
ou Destilação a baixa pressão ou a
pressão reduzida aplicada à fabricação da Cachaça. Trata-se de uma tecnologia nascida em Berkeley, nos EUA, originalmente adotada na obtenção de etanol e de algumas bebidas destiladas
naquele país e em outros na Europa. Desde o início dos anos 1980, ele pesquisa,
aplica, experimenta, com pioneirismo no Brasil, e aperfeiçoa, com muita
dedicação, sacrifícios e corajosa vanguarda, o processo da Destilação a Vácuo
para a obtenção de derivados da cana-de-açúcar: o etanol hidratado (álcool combustível)
e bebidas originárias da cana-de-açúcar, como a Aguardente e a Cachaça. Zarattini,
há quase trinta anos, desenvolve suas pesquisas da Destilação a Vácuo para obtenção da Cachaça, na forma, estrutura e
com as características químicas e sensoriais da bebida, definidas em Lei. Em
2011, ele concluiu e estabeleceu o seu método tecnológico e processo produtivo,
e patenteou a sua invenção no INPI – Instituto Nacional de Propriedade Industrial.
O
processo consiste na redução da pressão de vapor no interior do alambique,
abaixo da pressão atmosférica (760mm Hg ao nível do mar, ou seja, na
eliminação dessa pressão). A destilação ocorre, então, como se fosse no espaço sideral, na ausência de ar. Assim, o vinho de cana (mosto do caldo da cana-de-açúcar fermentado),
ao invés de entrar em ebulição na faixa entre 88oC-90oC,
como ocorre na destilação normal de alambique (artesanal tradicional), o
fenômeno se dá entre 50oC-55oC, abaixo do ponto de
desnaturação térmica da maioria dos compostos orgânicos presentes. Com isto, os “congêneres”
da Cachaça são reduzidos e mais facilmente controlados, e os contaminantes da
Cachaça significativamente reduzidos, praticamente eliminados.
Explico aos leigos. Há décadas, alguns alambiqueiros que não sabem fazer cachaça de Excelência Sensorial e outros, que também não o sabem, porém até bem intencionados, preocupados com o excesso dos “congêneres da Cachaça” (componentes voláteis "não álcool", ou substâncias voláteis "não álcool", ou componentes secundários "não álcool", ou impurezas voláteis "não álcool"), ou seja: aldeídos, furfural, ésteres, ácido acético (acidez volátil), alcoóis superiores, gerados nos processos de fermentação e destilação, dos quais resulta a bebida; e, também, apavorados com os contaminantes que, naturalmente, ocorrem nos dois processos, os contaminantes orgânicos: metanol e carbamato de etila (cancerígeno), acroleína e outros álcoois; e os contaminantes inorgânicos: cobre, chumbo, arsênio e outros álcoois – adotam a bi, tri e até a multidestilação, além de filtragens insólitas para extirpar tanto os “congêneres” como os contaminantes.
Explico aos leigos. Há décadas, alguns alambiqueiros que não sabem fazer cachaça de Excelência Sensorial e outros, que também não o sabem, porém até bem intencionados, preocupados com o excesso dos “congêneres da Cachaça” (componentes voláteis "não álcool", ou substâncias voláteis "não álcool", ou componentes secundários "não álcool", ou impurezas voláteis "não álcool"), ou seja: aldeídos, furfural, ésteres, ácido acético (acidez volátil), alcoóis superiores, gerados nos processos de fermentação e destilação, dos quais resulta a bebida; e, também, apavorados com os contaminantes que, naturalmente, ocorrem nos dois processos, os contaminantes orgânicos: metanol e carbamato de etila (cancerígeno), acroleína e outros álcoois; e os contaminantes inorgânicos: cobre, chumbo, arsênio e outros álcoois – adotam a bi, tri e até a multidestilação, além de filtragens insólitas para extirpar tanto os “congêneres” como os contaminantes.
Ora,
a quantidade dos “congêneres” da Cachaça, aos quais chamo de “santos venenos da
Cachaça”, são regrados em Lei quanto às suas presenças máximas e mínimas na
composição da bebida, bem como os contaminantes. Os “congêneres”, na sua
natural, equilibrada e devida medida, junto com o álcool etílico e a água, essa
milagrosa composição é que dá peculiaridade e caráter ao destilado de maior
exuberância sensorial do mundo que é a Cachaça. Inclusive, vale lembrar, o
coeficiente dos congêneres, a soma deles, possui parâmetros: o inferior não
pode estar abaixo de 200mg, e o superior acima de 650mg para cada 100ml de
álcool anidro, quantidades que identificam a Cachaça. Fora dessa faixa legal,
não existe Cachaça. E há, ainda, os limites máximos individuais de cada
“congênere” da Cachaça. São normas obrigatórias a serem constatadas na Análise
Química da bebida.
A
eliminação dos contaminantes é necessária e saudável, e deve, e pode, ser
reduzida a zero. Por outro lado, a eliminação total dos “congêneres” desnatura
a Cachaça, submetida a repetidas destilações e filtragens, descaracteriza o
destilado, torna-o insípido, insosso, “sem graça” tal quais os destilados
sensorialmente pobres como o gin, a tequila, a vodca, o corn, entre outros
derivados de cereais, vegetais e frutas. O produto desses alambiqueiros, aos
quais denomino “hipocondríacos da Cachaça”, pode ser definido como um álcool
neutro, sem aroma e sem o gosto do “espírito da cana”, próprio, adequado apenas
para alcoolizar coquetéis, também pobres, e bebedores simplórios, incultos, sem
exigências.
EXCELÊNCIA SENSORIAL – Os
objetivos de Zarattini com a Destilação a Vácuo da Cachaça são outros. Mais
sensatos, mais nobres para a saúde humana, industrialmente mais racionais e
produtivos, mercadologicamente mais inteligentes, mais viáveis. Enfim, mais
lucrativos para todos os segmentos da chamada “Cadeia Produtiva da Cachaça”. E,
claro, melhor e mais saudável para os consumidores que buscam uma Cachaça de
Excelência Sensorial mais pura, verdadeira, sem contaminantes, natural, plena, com
todas as características e virtudes originais do destilado nacional. Com a sua Destilação a Vácuo, Zarattini não quer criar um novo destilado, ou fabricar um destilado que não seja Cachaça. Zarattini
não quer um “álcool neutro”, um “espírito” sem aroma e sem sabor, procurados por
quem não conhece e não sabe beber Cachaça; ou pelos mixologistas, os bartenders, que querem tudo
“coquetelarizar”, mas que somente poucos conseguem produzir drinques e coqueteis
com a riqueza e a supremacia sensorial natural da Cachaça, preservando as suas
inigualáveis virtudes. O segredo está em misturar a Cachaça a outros destilados,
até mesmo a fermentados, além das frutas e cereais, resultando um verdadeiro
coquetel, que combine a Cachaça com as outras bebidas e elementos, sem
anulá-la, sem utilizá-la apenas como um mais um álcool a se integrar, ou
melhor, a se desintegrar no caos líquido.
Entretanto
o ideal, o fundamental, é produzir uma Cachaça para ser consumida pura, com o
controle maior dos seus “congêneres”, que não podem, nem devem, ser mínima ou completamente
eliminados a ponto de se fabricar uma bebida ignota, bizarra, sem face, sem
caráter, composto de álcool etílico e água. Nada disto. O que Zarattini
pretende com a Destilação a Vácuo é obter uma Cachaça de verdade, plena de seus
elementos originais e naturais, pura, límpida, fascinante no aroma e gostosa no
sabor, com cheiro de bagaço de cana pisado pelo burro, com a memória olfativa
da rapadura e do melado, do ambiente do engenho artesanal. Uma bebida agradável
e saudável, livre dos seus contaminantes, pelo menos quase totalmente extirpada
deles, alguns letais, outros patogênicos, que causam doenças, mazelas, sequelas
ao organismo humano. Enfim, Zarattini quer que a Destilação a Vácuo ajude ao
alambiqueiro artesanal, aquela minoria da minoria que sabe fazer Cachaça, a
oferecer ao mercado uma Cachaça de Excelência Sensorial, conceito crítico que
criei e pratico há mais de trinta anos: uma pinga pura, natural e sem venenos;
uniforme na cor, límpida; de aroma fascinante e delicado; na boca, com unidade
química (álcool + água), ardência necessária (água ardente), sensual e
excitante; saborosa, macia, edênica; de suave gustação e boa digestibilidade. Zarattini
quer um destilado menos agressivo ao paladar humano, com menor acidez, mais
suave, de sabor peculiar e agradável, com o aroma rústico e único da
cana-de-acúcar.
Essa
qualificação – uma Cachaça de Excelência Sensorial - apresentada e explicada
didaticamente em meus livros, é resultado e é definida pela Análise Sensorial
que faço para os meus clientes, que não se confunde com Análise Química, outro
procedimento, a cargo de outro profissional. A Degustação Profissional, bem
como a Análise Sensorial, trabalhos que realizo há quase trinta anos, para
diversos segmentos, do produtor de Cachaça ao empresário ou empreendedor,
passando pelo agrônomo, pelo químico, por diversos técnicos dos setores da
produção, do mercado, do consumo, são procedimentos profissionais diversos, que
aliam e exigem do Degustador, ampla sabedoria do universo da Cachaça, conhecimento
técnico-científico sobre a bebida, todos os aspectos e etapas do setor da
Agroindústria da Cachaça, aos valores, fundamentos, princípios, conceitos da
Cultura onde estão inseridos: o Cachaçólogo (estudioso) e o Degustador, uma só
pessoa, e a Cachaça, a marca, sua história, seu processo, características,
perfis químico e sensorial.
O CAMINHO – Após
integrar um projeto experimental de aplicação numa cooperativa no Paraná do Flash Ferm, e um segundo, da mesma
natureza, ambos para produção de etanol hidratado (álcool combustível) no mesmo Estado,
Ricardo Zarattini, de 1980 a 1986, prosseguiu nos seus estudos e experimentos, obtendo,
numa pequena “cebola” (alambique rústico) e num destilador a vácuo de bancada, em laboratório, empregado
nas análises rotineiras do etanol, Cachaça Bidestilada a Vácuo. Consolidava-se
uma conquista perseguida há anos. Era o primeiro passo. Desde então, Zaratttini, solitariamente e com
muitas dificuldades, jamais abandonou as suas pesquisas sobre a tecnologia.
Como podemos resumir e
explicar, basicamente, o processo Destilação
a Vácuo do Vinho de Cana Fermentado (do mosto fermentado), suas características e benefícios, descoberto e
patenteado por Zarattini? Com a referida ebulição do mosto fermentado, num
alambique a vácuo, sem pressão atmosférica, evita-se a desnaturação
térmica da maioria dos compostos orgânicos, os subprodutos indesejáveis,
nocivos à saúde humana os quais são significativamente reduzidos ou
completamente eliminados. Esses compostos orgânicos são os ácidos orgânicos,
originários da degradação térmica de proteínas, aminoácidos, vitaminas,
lipídios. Também estão presentes no mosto fermentado, as organelas, como a
clorofila e as células de micro-organismos. Com a Destilação a Vácuo, o
pesquisador também espera: minimizar, ao máximo, a velocidade de formação do
composto “carbamato de etila”, substância cancerígena, um grave e letal
contaminante da Cachaça; diminuir o consumo de lenha e/ou de bagaço de cana na
fornalha da caldeira que aquece o alambique, e a carga energética total
empregada no processo de destilação; melhorar a qualidade do vinhoto produzido,
que, numa gestão ambiental sustentada, é destinado à alimentação bovina e,
reciclado, aos canaviais, hortas e outras plantações.
Eu
e Ricardo Zarattini temos muitas concordâncias e identidades quanto pureza do
destilado, às características naturais que o tornam peculiar e único no mundo, ao
empirismo secular chancelado pela Ciência, ao rigor tecnológico e de higiene em
todas as etapas de fabricação da Cachaça, enfim muitas são as nossas convergências
relativas à Excelência Sensorial da Cachaça. Tive a honra de ter Ricardo
Zarattini como meu aluno no 2º Curso de
Formação Básica de Degustador de Cachaça – Amador e Profissional, que
ministrei em Ipanema, em 2011. O mesmo privilégio, em cinco versões do Curso,
eu tive, de poder transmitir a outros químicos, biólogos, engenheiros agrônomos
e de alimentos, economistas, alambiqueiros, destiladores, empreendedores, empresários e
técnicos do setor, estudantes, pingófilos e apreciadores em geral, as minhas
ideias, críticas, conceitos, propostas relativas à produção, comercialização e
consumo da bebida brasileira. Foram meia centena de alunos de vários Estados e
do exterior.
Nos
EUA, Ásia e na Europa, a Destilação a Vácuo já é utilizada na produção de
destilados de altíssima qualidade, entre eles, a vodca, o gin e a grapa. No
Brasil, Zarattini, pesquisador e consultor, aplicado e corajoso, superando inúmeras
dificuldades e obstáculos, é o inventor, o introdutor, o desenvolvedor do
processo na fabricação do destilado nacional, a nossa amada Cachaça.
Aguardo,
ansioso e otimista, os resultados dessa verdadeira vanguarda de Ricardo
Zarattini no universo da Cachaça, quando a Destilação a Vácuo terá, em 2017, as
primeiras e efetivas provas de produção econômica e empresarial num engenho
artesanal no Estado do Rio de Janeiro. Confio na ciência e capacidade tecnológica
do mestre Zarattini, vocação e amor ao nobre ofício de fazer sempre o melhor na
produção de destilados e no universo da Cachaça. Parabéns! Pleno êxito!
Sucesso!