quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

RICARDO ZARATTINI: UMA VANGUARDA NO UNIVERSO DA CACHAÇA

Tendo o mestre como aluno:
Zarattini faz, em 2011,
 um dos Cursos de Formação
 de Degustador que ministrei
em Ipanema, Rio.
(Foto: Bruno Lira)
Nascida casualmente em 1532 na Vila de São Vicente, hoje município de Santos, inventada pelo colonizador português Martim Afonso de Souza, seu irmão Pedro Lopes de Souza, e mais três portugueses – a nossa Cachaça, nesses quase quinhentos anos de vida, injusta criminalização e heroísmo, preserva, praticamente, as mesmas normas e procedimentos artesanais do Século XVI no seu processo de fabricação, da moagem da cana-de-açúcar à sua guarda (hoje, engarrafamento), passando pela fermentação e a destilação. Avançaram, é verdade, ou melhor, até se confirmaram, e muito, através da Ciência e da Tecnologia, o variado conhecimento, a sabedoria empírica sobre estas duas últimas fases. Mas nada de revolucionário, sucedâneo ao que se estabeleceu como princípios e fundamentos na terceira década da centúria dos Quinhentos. Descobriu-se a estrutura da bebida, seus elementos foram identificados e classificados, é verdade. Criaram-se materiais e condutas secundárias, complementares, que aperfeiçoaram significativamente a qualidade química e sensorial da bebida. Isto porque fermentação e destilação são processos que existem, espontânea e aleatoriamente, na natureza, são fenômenos biológicos, físicos e químicos, dos quais o homem se apropriou, passou a dominá-los e os utiliza, mesmo que, de início, precária e empiricamente, na fabricação de bebidas com álcool desde séculos antes de Cristo.

A Cachaça foi um milagre brasileiro, acontecido na terra recém-descoberta. A gramínea perene, de colmos (saccharum officinarum), o caldo da cana (garapa), o açúcar, o melaço, o melado, a rapadura, o alambique, a fermentação e o destilo – tudo isto já existia muito antes de Martim Afonso experimentar o melaço (provável matéria-prima), um subproduto da fabricação do açúcar, para obter a aguardente de cana-de-açúcar, então chamada de “aguardente da terra”, depois “jeribita” e, finalmente, “Cachaça”, a bebida brasileira, desenvolvida e regulamentada no Século XX, até chegar ao produto brasileiro, tal qual hoje conhecemos: uma denominação geográfica. E por que os portugueses não inventaram a Cachaça em Portugal se, no Minho, existiam canaviais no Séc. XV e se fabricava a bagaceira? Se, nos Açores e na Madeira, havia plantações, alambiques e bagaceiras, por que nesses arquipélagos não surgiu a Cachaça antes dos portugueses se radicarem e a inventarem aqui? Ninguém sabe até hoje porque a Cachaça não nasceu em Portugal ou nas colônias lusas em África. Daí a Cachaça, um milagre brasileiro.

Dizia que são importantes, mas pontuais, raríssimos, os avanços científicos e tecnológicos na produção da Cachaça. Depois do químico e professor mineiro João Manso Pereira (1750?-1820), certamente o nosso primeiro cachaçólogo e cientista da bebida, que criticou o cobre como material do alambique; do surgimento das normas de análise química e rotulagem em 1930; e da Identificação Geográfica e Denominação de Origem da Cachaça em 2001 – acredito que nada mais ocorreu de relevante no universo da pinga.

Porém, hoje, aos primeiros raios de 2017, uma vanguarda se efetiva: Ricardo Zarattini.

OUSADIA – Pesquisador e Consultor de Produção de Destilados, Ricardo Zarattini (Ricardo de Albuquerque Zarattini) é um estudioso de rara inteligência, disciplina prussiana, perseverança incansável, notável criatividade, ousadia e capacidade inventiva. Cientista e tecnólogo obstinado, apaixonado pelo seu ofício, Ricardo é o pioneiro no Brasil na aplicação do processo Flash Ferm, a Destilação a Vácuo ou Destilação a baixa pressão ou a pressão reduzida aplicada à fabricação da Cachaça. Trata-se de uma tecnologia nascida em Berkeley, nos EUA, originalmente adotada na obtenção de etanol e de algumas bebidas destiladas naquele país e em outros na Europa. Desde o início dos anos 1980, ele pesquisa, aplica, experimenta, com pioneirismo no Brasil, e aperfeiçoa, com muita dedicação, sacrifícios e corajosa vanguarda, o processo da Destilação a Vácuo para a obtenção de derivados da cana-de-açúcar: o etanol hidratado (álcool combustível) e bebidas originárias da cana-de-açúcar, como a Aguardente e a Cachaça. Zarattini, há quase trinta anos, desenvolve suas pesquisas da Destilação a Vácuo para obtenção da Cachaça, na forma, estrutura e com as características químicas e sensoriais da bebida, definidas em Lei. Em 2011, ele concluiu e estabeleceu o seu método tecnológico e processo produtivo, e patenteou a sua invenção no INPI – Instituto Nacional de Propriedade Industrial.

O processo consiste na redução da pressão de vapor no interior do alambique, abaixo da pressão atmosférica (760mm Hg ao nível do mar, ou seja, na eliminação dessa pressão). A destilação ocorre, então, como se fosse no espaço sideral, na ausência de ar. Assim, o vinho de cana (mosto do caldo da cana-de-açúcar fermentado), ao invés de entrar em ebulição na faixa entre 88oC-90oC, como ocorre na destilação normal de alambique (artesanal tradicional), o fenômeno se dá entre 50oC-55oC, abaixo do ponto de desnaturação térmica da maioria dos compostos orgânicos presentes. Com isto, os “congêneres” da Cachaça são reduzidos e mais facilmente controlados, e os contaminantes da Cachaça significativamente reduzidos, praticamente eliminados.

Explico aos leigos. Há décadas, alguns alambiqueiros que não sabem fazer cachaça de Excelência Sensorial e outros, que também não o sabem, porém até bem intencionados, preocupados com o excesso dos “congêneres da Cachaça” (componentes voláteis "não álcool", ou substâncias voláteis "não álcool", ou componentes secundários "não álcool", ou impurezas voláteis "não álcool"), ou seja: aldeídos, furfural, ésteres, ácido acético (acidez volátil), alcoóis superiores, gerados nos processos de fermentação e destilação, dos quais resulta a bebida; e, também, apavorados com os contaminantes que, naturalmente, ocorrem nos dois processos, os contaminantes orgânicos: metanol e carbamato de etila (cancerígeno), acroleína e outros álcoois; e os contaminantes inorgânicos: cobre, chumbo, arsênio e outros álcoois – adotam a bi, tri e até a multidestilação, além de filtragens insólitas para extirpar tanto os “congêneres” como os contaminantes.

Ora, a quantidade dos “congêneres” da Cachaça, aos quais chamo de “santos venenos da Cachaça”, são regrados em Lei quanto às suas presenças máximas e mínimas na composição da bebida, bem como os contaminantes. Os “congêneres”, na sua natural, equilibrada e devida medida, junto com o álcool etílico e a água, essa milagrosa composição é que dá peculiaridade e caráter ao destilado de maior exuberância sensorial do mundo que é a Cachaça. Inclusive, vale lembrar, o coeficiente dos congêneres, a soma deles, possui parâmetros: o inferior não pode estar abaixo de 200mg, e o superior acima de 650mg para cada 100ml de álcool anidro, quantidades que identificam a Cachaça. Fora dessa faixa legal, não existe Cachaça. E há, ainda, os limites máximos individuais de cada “congênere” da Cachaça. São normas obrigatórias a serem constatadas na Análise Química da bebida.

A eliminação dos contaminantes é necessária e saudável, e deve, e pode, ser reduzida a zero. Por outro lado, a eliminação total dos “congêneres” desnatura a Cachaça, submetida a repetidas destilações e filtragens, descaracteriza o destilado, torna-o insípido, insosso, “sem graça” tal quais os destilados sensorialmente pobres como o gin, a tequila, a vodca, o corn, entre outros derivados de cereais, vegetais e frutas. O produto desses alambiqueiros, aos quais denomino “hipocondríacos da Cachaça”, pode ser definido como um álcool neutro, sem aroma e sem o gosto do “espírito da cana”, próprio, adequado apenas para alcoolizar coquetéis, também pobres, e bebedores simplórios, incultos, sem exigências.

EXCELÊNCIA SENSORIAL – Os objetivos de Zarattini com a Destilação a Vácuo da Cachaça são outros. Mais sensatos, mais nobres para a saúde humana, industrialmente mais racionais e produtivos, mercadologicamente mais inteligentes, mais viáveis. Enfim, mais lucrativos para todos os segmentos da chamada “Cadeia Produtiva da Cachaça”. E, claro, melhor e mais saudável para os consumidores que buscam uma Cachaça de Excelência Sensorial mais pura, verdadeira, sem contaminantes, natural, plena, com todas as características e virtudes originais do destilado nacional. Com a sua Destilação a Vácuo, Zarattini não quer criar um novo destilado, ou fabricar um destilado que não seja Cachaça. Zarattini não quer um “álcool neutro”, um “espírito” sem aroma e sem sabor, procurados por quem não conhece e não sabe beber Cachaça; ou pelos mixologistas, os bartenders, que querem tudo “coquetelarizar”, mas que somente poucos conseguem produzir drinques e coqueteis com a riqueza e a supremacia sensorial natural da Cachaça, preservando as suas inigualáveis virtudes. O segredo está em misturar a Cachaça a outros destilados, até mesmo a fermentados, além das frutas e cereais, resultando um verdadeiro coquetel, que combine a Cachaça com as outras bebidas e elementos, sem anulá-la, sem utilizá-la apenas como um mais um álcool a se integrar, ou melhor, a se desintegrar no caos líquido.

Entretanto o ideal, o fundamental, é produzir uma Cachaça para ser consumida pura, com o controle maior dos seus “congêneres”, que não podem, nem devem, ser mínima ou completamente eliminados a ponto de se fabricar uma bebida ignota, bizarra, sem face, sem caráter, composto de álcool etílico e água. Nada disto. O que Zarattini pretende com a Destilação a Vácuo é obter uma Cachaça de verdade, plena de seus elementos originais e naturais, pura, límpida, fascinante no aroma e gostosa no sabor, com cheiro de bagaço de cana pisado pelo burro, com a memória olfativa da rapadura e do melado, do ambiente do engenho artesanal. Uma bebida agradável e saudável, livre dos seus contaminantes, pelo menos quase totalmente extirpada deles, alguns letais, outros patogênicos, que causam doenças, mazelas, sequelas ao organismo humano. Enfim, Zarattini quer que a Destilação a Vácuo ajude ao alambiqueiro artesanal, aquela minoria da minoria que sabe fazer Cachaça, a oferecer ao mercado uma Cachaça de Excelência Sensorial, conceito crítico que criei e pratico há mais de trinta anos: uma pinga pura, natural e sem venenos; uniforme na cor, límpida; de aroma fascinante e delicado; na boca, com unidade química (álcool + água), ardência necessária (água ardente), sensual e excitante; saborosa, macia, edênica; de suave gustação e boa digestibilidade. Zarattini quer um destilado menos agressivo ao paladar humano, com menor acidez, mais suave, de sabor peculiar e agradável, com o aroma rústico e único da cana-de-acúcar.

Essa qualificação – uma Cachaça de Excelência Sensorial - apresentada e explicada didaticamente em meus livros, é resultado e é definida pela Análise Sensorial que faço para os meus clientes, que não se confunde com Análise Química, outro procedimento, a cargo de outro profissional. A Degustação Profissional, bem como a Análise Sensorial, trabalhos que realizo há quase trinta anos, para diversos segmentos, do produtor de Cachaça ao empresário ou empreendedor, passando pelo agrônomo, pelo químico, por diversos técnicos dos setores da produção, do mercado, do consumo, são procedimentos profissionais diversos, que aliam e exigem do Degustador, ampla sabedoria do universo da Cachaça, conhecimento técnico-científico sobre a bebida, todos os aspectos e etapas do setor da Agroindústria da Cachaça, aos valores, fundamentos, princípios, conceitos da Cultura onde estão inseridos: o Cachaçólogo (estudioso) e o Degustador, uma só pessoa, e a Cachaça, a marca, sua história, seu processo, características, perfis químico e sensorial.

O CAMINHO – Após integrar um projeto experimental de aplicação numa cooperativa no Paraná do Flash Ferm, e um segundo, da mesma natureza, ambos para produção de etanol hidratado (álcool combustível) no mesmo Estado, Ricardo Zarattini, de 1980 a 1986, prosseguiu nos seus estudos e experimentos, obtendo, numa pequena “cebola” (alambique rústico) e num destilador a vácuo de bancada, em laboratório, empregado nas análises rotineiras do etanol, Cachaça Bidestilada a Vácuo. Consolidava-se uma conquista perseguida há anos. Era o primeiro passo. Desde então, Zaratttini, solitariamente e com muitas dificuldades, jamais abandonou as suas pesquisas sobre a tecnologia.

Como podemos resumir e explicar, basicamente, o processo Destilação a Vácuo do Vinho de Cana Fermentado (do mosto fermentado), suas características e benefícios, descoberto e patenteado por Zarattini? Com a referida ebulição do mosto fermentado, num alambique a vácuo, sem pressão atmosférica, evita-se a desnaturação térmica da maioria dos compostos orgânicos, os subprodutos indesejáveis, nocivos à saúde humana os quais são significativamente reduzidos ou completamente eliminados. Esses compostos orgânicos são os ácidos orgânicos, originários da degradação térmica de proteínas, aminoácidos, vitaminas, lipídios. Também estão presentes no mosto fermentado, as organelas, como a clorofila e as células de micro-organismos. Com a Destilação a Vácuo, o pesquisador também espera: minimizar, ao máximo, a velocidade de formação do composto “carbamato de etila”, substância cancerígena, um grave e letal contaminante da Cachaça; diminuir o consumo de lenha e/ou de bagaço de cana na fornalha da caldeira que aquece o alambique, e a carga energética total empregada no processo de destilação; melhorar a qualidade do vinhoto produzido, que, numa gestão ambiental sustentada, é destinado à alimentação bovina e, reciclado, aos canaviais, hortas e outras plantações.

Eu e Ricardo Zarattini temos muitas concordâncias e identidades quanto pureza do destilado, às características naturais que o tornam peculiar e único no mundo, ao empirismo secular chancelado pela Ciência, ao rigor tecnológico e de higiene em todas as etapas de fabricação da Cachaça, enfim muitas são as nossas convergências relativas à Excelência Sensorial da Cachaça. Tive a honra de ter Ricardo Zarattini como meu aluno no 2º Curso de Formação Básica de Degustador de Cachaça – Amador e Profissional, que ministrei em Ipanema, em 2011. O mesmo privilégio, em cinco versões do Curso, eu tive, de poder transmitir a outros químicos, biólogos, engenheiros agrônomos e de alimentos, economistas, alambiqueiros, destiladores, empreendedores, empresários e técnicos do setor, estudantes, pingófilos e apreciadores em geral, as minhas ideias, críticas, conceitos, propostas relativas à produção, comercialização e consumo da bebida brasileira. Foram meia centena de alunos de vários Estados e do exterior.

Nos EUA, Ásia e na Europa, a Destilação a Vácuo já é utilizada na produção de destilados de altíssima qualidade, entre eles, a vodca, o gin e a grapa. No Brasil, Zarattini, pesquisador e consultor, aplicado e corajoso, superando inúmeras dificuldades e obstáculos, é o inventor, o introdutor, o desenvolvedor do processo na fabricação do destilado nacional, a nossa amada Cachaça.

Aguardo, ansioso e otimista, os resultados dessa verdadeira vanguarda de Ricardo Zarattini no universo da Cachaça, quando a Destilação a Vácuo terá, em 2017, as primeiras e efetivas provas de produção econômica e empresarial num engenho artesanal no Estado do Rio de Janeiro. Confio na ciência e capacidade tecnológica do mestre Zarattini, vocação e amor ao nobre ofício de fazer sempre o melhor na produção de destilados e no universo da Cachaça. Parabéns! Pleno êxito! Sucesso!

6 comentários:

  1. Prezado Marcelo, agradeço de coração o seu artigo sobre a Destilação a Vácuo. Muito me deixa feliz saber que ganhei um companheiro, além de Mestre, nessa luta para a melhoria dá qualidade dá nossa genuína Cachaça.
    Um forte abraço do aluno de sempre!

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  2. Saudações Marcelo Câmara...
    Destilação a Vácuo, melhorando a qualidade da cachaça e eliminando o carbamato de etila...como podemos acompanhar essa pesquisa do Ricardo Zarattini e quando isso vai virar uma realidade nos alambiques!? Muito bom o texto...abraço

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    1. Edney, teremos os primeiros resultados empresariais, econômicos, da destilação a vácuo, ainda em 2017, no Estado do Rio de Janeiro. Publicarei neste blog as primeiras alambicadas a vácuo, as quais, confio, serão exitosas, graças à seriedade e competência do Zarattini.

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  3. Bom dia,
    Sou produtor de cachaça em Mogi Mirim/SP e gostaria de mais informações sobre o processo de destilação a vácuo. Constantemente buscamos inovar na qualidade de nosso produto, esse ano desenvolvemos método para resfriar o mosto com serpentinas e água gelada de forma automática para reduzir a formação de alcoois indesejáveis. Como podemos proceder?
    Parabéns pelo Blog

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  4. Senhor Produtor de Mogi Mirim que escreveu o comentário acima. Escreva para mim, para o e-mail ilhaverde@ilhaverde.net e eu lhe fornecerei o e-mail do Consultor, Doutor Ricardo Zarattini, a fim de que vocês conversem sobre o assunto. Cordialmente, Marcelo Câmara.

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  5. Prezado Marcelo, companheiro e amigo de sempre neste vasto universo que é a Cachaça. Estamos finalizando a construção e montagem do módulo de destilação a vácuo. Acredito que em meados do novembro já estaremos operando na Engenho D'Ouro. Obrigado mais uma vez pelo apoio de sempre! Grande abraço!

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