segunda-feira, 30 de julho de 2018

TOLICE E INVERDADE: "A CAIPIRINHA NASCEU EM PARATY"

Na mídia desde janeiro de 2014

“DIVULGAR QUE
A CAIPIRINHA NASCEU EM PARATY
É TOLICE, FANTASIA, INVERDADE, EMBUSTE”,
AFIRMA ESPECIALISTA.



CAIPIRINHA E UMA BATIDA CHAMADA RUCU-RUCU


“A ELABORAÇÃO DE UMA BOA BATIDA
- FILHA FIDALGA DA CACHAÇA –
É TODA UMA ARTE CHEIA DE SUTILEZAS.” 

(GILBERTO FREYRE IN CACHAÇA – 114 RECEITAS DE BATIDAS, 1976)

Várias vezes me perguntaram quando, como e onde nasceu a Caipirinha, quando surgiram as batidas de frutas que têm como base a Cachaça. Ou quem inventou a batida de limão. Um pingófilo amigo sempre repetia quando um problema o ameaçava: “Como dizia Napoleão, a solução é batida de limão”. Eu acredito que tanto a Caipirinha quanto as batidas de Cachaça com frutas surgiram logo depois de a Cachaça nascer em plena Mata Atlântica, no litoral norte de São Paulo, no início do século XVI. Os primeiros provadores e bebedores do “vinho de mel de cana” em São Vicente tinham, em seu redor, exuberantes, dezenas de espécies de frutas tropicais, perfeitas para a mistura com a aguardente, mel ou açúcar. A experiência da mistura foi natural. Esta é uma dedução histórica natural, aplicando-se a Lógica à História.

A referência mais antiga que encontrei sobre o assunto é recente. O guarda-marinha inglês Edward Wilberforce, embarcado no navio Geyser, da Marinha Real Inglesa, que tinha por objetivo o combate ao tráfico, é o autor do livro Brazil Viewed Through a Naval Glass: With Notes on Slavery and The Slave Trade (O Brasil visto por uma luneta naval: com notas sobre a escravidão e o tráfico de escravos). O texto foi finalizado em outubro de 1855. O livro, editado em Londres no ano seguinte. O Geyser patrulhou a costa brasileira de 1851 a 1855. Wilberfoce reserva um capítulo inteiro da sua obra para narrar a alegria da tripulação quando teve permissão para ir a terra, na Praia das Laranjeiras, no litoral sul de Paraty. E que alegria era essa? Por que a tripulação exultou em descer na Laranjeiras?


Edward Wilberforce (Imperial War Museums)
Pela narrativa detalhada do Wilberforce, a tripulação, incluindo os oficiais, num dia entre fevereiro e março de 1851, refresca-se, refestela-se, com muita agitação, alvoroço até, ao ir a terra chupar laranjas e beber grog. Beber grog significa beber aguardente misturada à água, ao limão e ao açúcar. “Grog” também pode ser traduzido como qualquer bebida forte, qualquer destilado, puro com água e limão, com ou sem açúcar; o rum puro ou o rum com água e limão, com ou sem açúcar. Mas é inimaginável que na Praia das Laranjeiras, em Paraty, a tripulação de Wilberforce tenha descido a terra para beber rum com água e limão, com ou sem açúcar. A aguardente nativa e existente naquela praia, a “Baía das Laranjeiras”, “Orange Bay”, como Wilberforce chama aquele sítio, é a famosa “paraty”, aguardente de cana-de-açúcar superior, feita na região, que, dois séculos antes, já era distinta, melhor e mais cara do que todas as “aguardentes da terra” ou “jeribitas”, fabricadas e de uso generalizado em todos os cantos da Colônia, depois Vice-Reino e, à época, Império do Brasil. Beber grog, ou seja, paraty misturada com água, limão, com ou sem açúcar, é o que Wilberforce descreve efusivamente em sua obra, num cenário tropical, de natureza exuberante, onde flora, fauna, geografia fascinante, tudo era novidade, prazer e êxtase. O Geyser havia deixado a Londres urbana e fria em novembro de 1850, antes do terrível inverno.


Praia das Laranjeiras nos olhos e lentes de Anna Carolina Motzko (annamotzko.wordpress.com)
A tripulação bebeu bastante, a alegria foi contagiante e generalizada. Wilberforce descreve o excesso etílico de um tripulante, bêbado, que, após beber e fumar, tenta se explicar ao capitão: “I wasn’t drunk, sir, not by no means. I was just kinder stupefied, sir, not by drink at all. I’ll just tell ye how it was. I had one glass, or it may be two glasses, or it might be three glasses, sir, o’ porter, and one glass o’ grog, which wasn’t nothing like enough to make me drunk, sir!”.

Portanto, aí está a confissão de um tripulante que bebeu vários copos de grog. Trata-se do primeiro registro bibliográfico, pelo menos que eu conheça, do consumo da mistura Cachaça + água + limão + açúcar, feito no Brasil. Este é o primeiro registro de uma mistura que mais se aproxima do que iríamos chamar, a partir do século XX, de Caipirinha, o drinque brasileiro por excelência. 


Mas nem por isso eu cometeria a leviandade de afirmar que a Caipirinha nasceu na Praia das Laranjeiras, em Paraty, em 1851. A Caipirinha, as batidas em todos os cantos do Brasil, os bate-bates nordestinos de Cachaça com frutas, são soluções, como disse acima, segundo a minha dedução, de que tais misturas nasceram, naturalmente, contemporâneas à própria Cachaça, na Mata Atlântica, na Capitania de São Vicente, no século XVI. Depois, se repetiram e se multiplicaram em todas as terras de consumo, nos arredores de todos os engenhos da Colônia, nos arraiais, freguesias, aldeias, vilas e cidades. Muito mais, é claro, como busca de prazer, de sair da realidade, e de animar festas, “esquentar” reunião, diversão ou lazer; e, muito menos, o uso da Cachaça com finalidade medicinal, de cura, o que também era usual. 

O registro de uma prática, de uma receita de bebida ou comida, do consumo de uma bebida misturada a alguma fruta com açúcar; ou o registro de um fato, em documento, jornal ou livro, ocorrido em determinado lugar, em certa data, não autoriza ao registrador ou ao leitor daquele registro afirmar que a prática que descreve se deu, naquele lugar, naquela data, pela primeira vez. Não permite ao historiador enunciar que aquela bebida, que aquela receita, nasceu naquele lugar ou naquela data. Um erro grosseiro, inconcebível ao mais incipiente pesquisador. Seria como um historiador que registra, pela primeira vez, uma prática gastronômica, um prato, ou a uma confecção artesanal de um objeto, em determinado lugar, numa determinada data, assegurar que aquela prática nasceu naquele lugar e naquela data, onde e quando ele, circunstancialmente, registrou. 
Um primeiro registro de um fato por uma pessoa não pode ser confundido com a sua primeira ocorrência, como se o fato ele acontecesse pela primeira vez, constituindo-se um fato inédito.

Nesse equívoco, incorreu quem, certamente néscio em Cachaça e na sua História, ao encontrar nos Arquivos da Câmara Municipal de Paraty um documento de 1856, no qual o engenheiro civil João Pinto Gomes Lamego, respondendo a um ofício do presidente da Câmara do município, justificava o destino que dera ao volume de aguardente a uma “feria” de trabalhadores, erra ferozmente. O engenheiro explica que serviu “aguardente temperada com água, açúcar e limão”, em substituição à água, aos trabalhadores que labutavam na obra de um cemitério, lugar que considerava insalubre. Segundo o engenheiro, fez isso para evitar que os trabalhadores, “suados do trabalho” poderiam “sofrer algum outro mal”, além da cólera que grassava naquela quadra na cidade, pois a água era o principal veículo transmissor da doença. Após ler a justificativa de Lamego, concluiu-se que “a Caipirinha nasceu em Paraty”.

Ora, em primeiro lugar, a receita do engenheiro de Paraty não era uma receita de Caipirinha, como desde o início do século XX é denominado o drinque que consiste em macerar o limão com casca em pedaços com a Cachaça, obtendo-se o suco e o sumo da fruta, adicionando-se açúcar, permanecidos os despojos da fruta no fundo do copo. Não há essa descrição no “Officio”. O que o engenheiro recomendou nem sequer foi um grog brasileiro, substituindo-se o rum pela Cachaça. Explicando: a receita do engenheiro ao “proibir” que os trabalhadores bebessem água, no local de trabalho, mas a tal mistura não é a da Caipirinha que conhecemos. Também não pode ser considerada Batida de Limão, outra bebida à base de Cachaça, em que Cachaça, limão e açúcar não são apenas misturados, mas batidos manualmente num recipiente, numa coqueteleira. Também não é Cachaça com Limão, uma terceira bebida, que consiste em chupar o limão e beber a dose de Cachaça, ou espremer o limão numa dose de Cachaça, sempre sem açúcar.

Por que a receita do engenheiro de Paraty apenas se assemelha e não é um grog abrasileirado? Porque é uma mistura de água com Cachaça, limão e açúcar. Isso, repito, não é Caipirinha, não é batida de limão, não é Cachaça com limão, não é um drinque. É apenas uma mezinha, como se chamava à época uma receita caseira para evitar que a população tomasse em demasia ou qualquer água disponível, que era o maior agente transmissor da cólera. A mistura apenas sugere que a água a ser bebida com alguma cachaça e limão seria suposto “antídoto” às doenças, como se acreditava à época, adicionando-se o açúcar para tornar mais palatável o “remédio”, o preventivo.

Criado pelo almirante inglês Edward Vernon, alcunhado Old Grog, o grog original que os ingleses assim chamavam no Caribe e em África, era a mistura somente de rum com água. Mais tarde, surgiu o rum-água-casca de limão, com ou sem açúcar. Em Cabo Verde, desde o final do século XVI, fabrica-se o grogue, a aguardente de cana-de-açúcar típica do arquipélago, que serve de base para o pontche (com limão e açúcar) e, também, para a nossa Caipirinha, que, se foi exportada para a ex-colônia portuguesa ou se é uma irmã gêmea lá nascida, ainda não se sabe. Mas, também, em Cabo Verde, desde o século XVIII, chama-se “grogue” a mistura de aguardente, limão e açúcar. Mas isso é assunto para outra obra que cometerei antes do meu velório.

Em segundo lugar, essa mistura do engenheiro, se alguém insiste em assim considerar Caipirinha ou assim chamá-la, já tinha sido registrada, como vimos, por Wilberforce, seis anos antes do engenheiro Lamego, na Praia das Laranjeiras, em 1851. Somente registrada. Não criada ou inventada por algum tripulante do Geyser ou algum morador do lugar. Primário e grave equívoco assim concluir. Para mim, insisto, a existência da Caipirinha já era velha nessa data, tinha mais de três séculos, conhecida e consumida desde o nascimento da Cachaça no século XVI, como já escrevi nesta obra. A denominação “Caipirinha” somente se consolida com a Semana de Arte Moderna, mas é “remédio” desde o século XVII, informam os livros de Farmacopeia do Brasil Colônia.

Portanto, a afirmação segundo a qual “a Caipirinha nasceu em Paraty” é pura prestidigitação paroquial, esforço de paroquiano desejoso de promover a paróquia, que não resiste a mais singela crítica. A tese, segundo a qual a Caipirinha nasceu em Paraty, não se sustenta e é resultado contrário às mais elementares e básicas condutas, critérios e métodos próprios da Pesquisa e da Historiografia Científica, empenhada em registrar, interpretar e enunciar, com seriedade, correção e zelo, fato digno de interesse e importância civilizatória.

A criatividade brasileira para usar a Cachaça na cozinha, na copa e no bar é infinita, especialmente com as frutas da terra. No Nordeste, batida é chamada, como disse, de bate-bate. Em Paraty, em meados da década de 1960, mais de um século depois da narrativa de Wilberforce, eu me apaixonei por uma batida motorizada, criada pelo saudoso e querido Dito Coupê (Benedito Telmo Coupê), dono do tradicionalíssimo Bar do Dito, que fica na Praça Monsenhor Hélio Pires, a Praça da Matriz, no centro da cidade. Pedia-se no balcão: “Uma batida de limão no liquidificador, por favor”. Quando não era o Seu Dito quem preparava a bebida, era o Mixaria (Jonas Virgulino Pacheco), empregado de confiança. O popular Zezeca (José Benedito Nunes da Silva) batizou a bebida de Rucu-rucu, onomatopeia que imitava o barulho que o velho liquidificador fazia ao bater o drinque. Hoje, no Bar do Dito, não existe mais o Rucu-rucu, porém eu divulgo a batida que os meus amigos chamam de Marcelina, por causa da minha paixão por ela.
(Trecho da segunda edição do livro
Cachaça – Prazer Brasileiro,
de Marcelo Câmara, Ed. Mauad X, Rio, 2018.
pág. 163 a 169.)
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