domingo, 12 de março de 2017

LACERDISTAS ENRUSTIDOS E DISSIMULADOS

Depois que um amigo me contou que foi testemunha ocular de o fato que agora narro, nada mais me surpreende nesse mundo dos “intelectuais” ortodoxos, sectários e convictos. Ele se aproximou do personagem para se certificar de que não era uma ilusão de ótica ou um erro de identificação. Ou se seria um sósia a pessoa a poucos metros dele. Numa igreja da Tijuca, zona norte do Rio, este meu amigo flagrou o historiador materialista dialético, marxólogo, teórico respeitado nacionalmente, ateu praticante, autor de dezenas de livros, aclamado por leninistas, trotskistas e maoístas, o coronel Nelson Werneck Sodré, já provecto, meses antes de falecer, orando, de pé, contrito, tocando uma imagem de Nossa Senhora. Chegou bem perto do intelectual comunista para confirmar o que via. O coronel estava com os olhos marejados e balbuciava humilde e piedosamente. Até aí nada demais. Compreensível. Ao Homem, na sua pequenez, continência e contradições cotidianas, qualquer mudança no pensamento, no coração e no espírito é permitida e tolerável, mesmo que imprevisível. Porém o que constrange e decepciona o observador social são aqueles sujeitos arautos de determinada ideologia, partido ou posição política, que, ordinária e regularmente, fogem de si mesmos, mentem, “posam para fotografia”, surfam em onda alheia, dissimulam, interpretam, sempre, papéis, os quais, publicamente, negam ou não admitem em hipótese alguma.

Uma dessas crenças, uma corrente histórica não assumida, envergonhada, é o Lacerdismo, o fato de alguém receber a pecha “insultuosa” de ”lacerdista”, seguidor, correligionário de Carlos Lacerda (1917-77), vereador, deputado estadual e federal, governador da falecida Guanabara, fundador da famigerada UDN. O máximo que admitem é dizer: “Um grande administrador, mas não me venham com a mentira dos mendigos mortos no Rio da Guarda...”. Não se trata de se revelar, com orgulho e sem constrangimentos, como um cidadão de Direita, liberal, consciente e defensor da Justiça Social num sistema capitalista. Nem tão pouco de se manifestar como um “Conservador”, monarquista ou republicano, de Direita, sem oscilações e conveniências, também consciente e responsável social e politicamente. Neste último caso, o do Conservadorismo, tanto a Direita sã, capitalista, criativa e inventiva, bem como a raríssima Esquerda Democrática (Trabalhistas e Social-Democratas), consideram saudável, indispensável, a sua presença no espectro partidário de uma Democracia.

Mas o Rio está enxameado de lacerdistas enrustidos, herdeiros daquele Carlos Lacerda talentoso e feroz, incoerente, virulento e oportunista, que professou, na juventude e maturidade, todos os credos políticos imaginários, com exceção do monárquico, mas pontificou, glorificou-se mesmo como a mais execrável Direita, calhorda, antinacional, entreguista, manipuladora da frágil e vulnerável classe média, que Darcy Ribeiro denominava de “Direita Tarada”. Era um balaio no qual poderíamos ajuntar, ontem, além de Lacerda, um Amaral Neto, um Roberto Campos, Sandra Cavalcanti, Médici, David Nasser, Cantídio Sampaio, ACM e outros vultos. E, hoje, um Bolsonaro, um Pastor Everaldo, Dornelles, entre outros.

Os remanescentes do Lacerdismo têm pudor de se revelarem como tais, de mostrarem o rosto lacerdófilo, da “direta tarada” que levou Getúlio Vargas ao suicídio e apoiou o Golpe Militar de 1964. Recentemente, vivi alguns exemplos desse receio e dissimulação. Um deles, e o mais emblemático, foi a manifestação de um “jornalista” que posa de “trabalhista histórico” – imaginem! – quando escrevi sobre a última vez que eu vi Carlos Lacerda. Foi em Paraty, RJ, no início da década de 1970, intermediando transações imobiliárias complexas, no mínimo “suspeitas”, dizia-se. Era madrugada e Lacerda estava meio grogue, sob chuva fina, sozinho, numa das ruas do Bairro Histórico, admirando sobrados e casarões.

Pois bem, o tal “jornalista” ficou tão indignado com a minha informação verdadeira e comprovável por dezenas de paratyenses vivos contemporâneos, que, editor de um site, censurou o meu texto e retrucou sanguinariamente: “Não é verdade. Você está inventando. Lacerda era milionário, vendeu a Tribuna da Imprensa por dez milhões de dólares (? – interrogação minha). Ele nunca morou em Paraty, nem jamais foi corretor de imóveis...”. Enfureceu-se, também, quando, comprovadamente, afirmei que Lacerda participara de conspirações contra-revolucionárias ocorridas logo em 1931, prontamente reprimidas, escondendo-se em propriedade da família em Vassouras, RJ. Analfabeto histórico, crítico circunstancial do varejo político, rasteiro, que pululam nos noticiários; pequeno, medíocre, inculto, sem informação, o tal “jornalista”, além de se ofender, de se revelar um lacerdista enrustido, entendeu que um sujeito do nome, prestígio, inteligência e capacidade de um Carlos Lacerda, mesmo no ostracismo político, cassado politicamente, precisaria morar em Paraty ou ter inscrição do CRECI para negociar com grandes grupos e corporações econômicas, a compra e venda de imóveis, tanto na cidade como no belíssimo, cobiçado e valorizadíssimo (já naquela época) litoral do único Município do País considerado por lei “Município Monumento Nacional”.

Após ser agredido e insultado pelo pseudojornalista em decorrência deste episódio, que me acusou de “descuidado e ficcionista”, disse ao sujeito que ele continuava “um ginasiano, após décadas de ‘Jornalismo’. E que nunca deixou de ser um lacerdista”. Além disto, e por conta da discussão em que eu não tinha contendor, mas somente um detrator farsante, sobre o dorso da arrogância, chamei-o de “incivilizado, mal educado e analfabeto político, histórico e cultural. Afinal, falecido”. A um suposto e circunstancial amigo comum, eu disse que o lacerdista enrustido era apenas “um ex-repórter esperto, um ex-editor medíocre, como centenas que estão por aí. Intelectualmente, um asno, um "intelectual de orelha de livro". Profissionalmente, um incapaz. Moralmente, um pulha, inescrupuloso." Infelizmente, com um lacerdista dissimulado, a mesma violência, as mesmas armas de quem Samuel Wainer apelidou de "O corvo", agourenta e traiçoeira ave, amoral, sem nenhum caráter, como costumava qualificar essas espécies, o genial Nelson Rodrigues.

Seria mais normal e saudável, democrática e historicamente compreensível e aceitável, se os que comungam com as ideias e pensamento de Carlos Lacerda, seus viúvos e sectários envergonhados, assumissem essa condição e mostrassem o rosto, fizessem os seus discursos. Mas a realidade mostra os insistentes disfarces, escapismos e dissimulações ineficazes.