Fábula desmoralizante e corruptora
(Para se ler nu, ou nua, em jubiloso êxtase patriótico,
desfraldada a bandeira nacional.)
A 5 de outubro de 2009, três dias após a Cidade do
Rio de Janeiro ser escolhida para sediar as Olimpíadas de 2016, o jornalista e
consultor cultural Marcelo Câmara escreveu o texto abaixo e o enviou aos
veículos da grande mídia. Todos se negaram a publicá-lo. Consideraram o artigo
“um insulto à boa-fé das autoridades, um escárnio, um deboche, anti-nacional, muito
pessimista etc.” O autor, então, o divulgou no seu site profissional www.ilhaverde.net.
Outro site que publica textos censurados ou rejeitados pela mídia o colocou no
ar.
Sete anos depois, às vésperas das Olimpíadas, com a
Cidade maquiada e dissimulada pelos Governos Federal e Estadual, e, mais ainda,
pela Prefeitura, que constrói ciclovias como brinquedos de montar para
crianças, assassinando pessoas, o Rio tem a sua Zona Sul, os locais de
competição e seus pontos turísticos dissimulados com “limpeza” diária e falsa
segurança. Enquanto isto, o restante da Cidade é quase um lixão, uma terra
arrasada, repleta de buracos, sem calçadas, sem hospitais, sem postos de saúde,
sem escolas, assaltos a cada trinta minutos, sem saneamento, transportes, um
caos urbano generalizado.
Sete anos após, publico o artigo demonizado pela mídia em 2009,
um texto profético, verdadeiro, jornalístico, que confirma os irônicos e trágicos
vaticínios, as previsões que fiz em 2009.
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Rio, 5.10.2009 - Na
última sexta-feira, dia 2 de outubro, o Rio de Janeiro carnavalizou-se.
Ansiedade e catarse, alegria e samba, travestismo e delírio. A dinamarquesa
Kopenhagen anunciava: o Brasil hospedaria os jogos olímpicos e paraolímpicos de
2016. A
festa inundou zonas sul, norte, oeste, subúrbios, arrabaldes rurais
remanescentes.
Foguetes, cerveja, shows na Praia de Copacabana. Parecia que tínhamos governos
honestos, de mínima e natural corrupção, em todos os níveis, que cumpriam
compromissos ideológicos e programáticos dos seus respectivos partidos
políticos.
Podia-se até imaginar que estávamos numa democracia e vivíamos num país onde os
indivíduos eram respeitados nos seus fundamentais direitos e comiam
relativamente bem; se vestiam e tinham saúde, eram humanamente atendidos nas
unidades de saúde e hospitais; estudavam em escolas decentes, iam e vinham no
seu cotidiano sem assaltos, a salvo das balas perdidas e estupros; o esporte e
o lazer eram generalizados; os direitos culturais estavam garantidos e eram
amplamente exercidos; havia transportes públicos seguros e eficazes;
trabalhavam dignamente; enfim, as pessoas viviam e conviviam em paz, felizes.
Sonhavam, criavam, produziam. Os serviços públicos eram públicos, atendiam à
população.
Naquela manhã, as edições dos jornais e revistas, os telejornais e a Internet
não recuperavam as pautas dos últimos meses: as irregularidades de toda ordem,
a lama pútrida que lambuzou todas as instituições públicas que planejaram,
organizaram e realizaram os Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro em 2007. Corrupção
ativa, peculato, licitações fraudadas, projetos não executados ou mal
realizados, desvio de dinheiro público, incúria, prevaricação, furtos, formação
de quadrilha, falsidade ideológica, superfaturamento de obras e serviços, que,
quando prestados eram insuficientes ou criminosos. Desadministração delituosa, total e epidêmica, malversação do
dinheiro público em todos os níveis e esferas, em todas as etapas, em todos os
ginásios, estádios, parques e arenas.
E vamos de providências, sindicâncias, auditorias, investigações, apurações,
denúncias, inquéritos, indenizações, CPIs, ações públicas, processos
administrativos, cíveis e criminais - tudo sem conclusões, sem
responsabilidades, sem réus, sem culpados, sem condenações, sem detenções, sem
cárceres ou encarcerados.
"Ninguém foi preso" - a frase mais publicada e anunciada no País,
desde que somos "República". Ou: "O processo concluiu que houve
falhas, houve erros na aplicação das verbas, mas não se pode apontar culpados
ou condenar pessoas responsáveis".
Horas mais tarde ao anúncio, na madrugada de sábado, Marlene, uma empregada
doméstica, dormitava e soluçava com o filho de um ano no colo, ardendo em
febre, convulsivo, numa parada de ônibus sem ônibus, na zona sul, a mais rica,
da cidade.
Voltava para casa para ver se algum vizinho, alguma alma generosa da favela
onde vivia, salvaria a vida do menino. Isto porque, no hospital público, o
melhor da cidade, situado na Gávea, onde havia sido atendida, após espera de
três horas, "nada podia ser feito, pois além de não haver médico
especialista de plantão, não havia Dipirona,
que estava em falta há quinze dias". Fazer o que? Clamar a quem? Ao bispo?
- indignava-se Marlene. Mas não sei onde ele dorme, pensou. "Ao Papa? Roma
está longe, nem sei como lá se chega. E o prefeito? Que fim levou? E o
governador? Tá viajando. E o vereador? O deputado? O senador? Sei lá... Será
que polícia resolve? Uma dipirona já aliviava o sofrimento... Dava pra
amanhecer o dia. Porra! Não é fácil. Todo dia a gente escuta no rádio e vê na
televisão: corrupção, roubo do dinheiro do povo... e o hospital não tem um
frasco de dipirona!?..."
Marlene matutou e amaldiçoou. Um motorista de táxi, piedoso, conhecido,
levou-os, ela e o filho, até a entrada da comunidade. Eram quatro horas da
manhã. Não se sabe o que aconteceu com Pedro, o menino em chamas e encharcado em
vômito, nos braços da empregada doméstica.
Mas, alvíssaras! As notícias são boas, são as melhores. Com as Olimpíadas de
2016, além da auto-estima carioca dar um salto, o orgulho de ser brasileiro vai
bater um recorde. Para a cidade do Rio de Janeiro, maravilhosa por natureza,
será a redenção. Será a oportunidade, depois das olímpicas, de asneiras como
aquela de se lhe tirar a condição de capital federal e de se lhe impor a fusão
entre o fictício e falecido Estado da Guanabara e o eterno e injustiçado Estado
do Rio de Janeiro – finalmente, o povo carioca, o povo fluminense vão melhorar
para sempre a sua qualidade de vida.
Os jogos vão viabilizar vultosos investimentos públicos na infraestrutura da
cidade, nos equipamentos e serviços públicos. Receberão, vultosos recursos, a
saúde, a educação, a segurança, os transportes, a habitação popular.
Vão cessar esses projetos burros de maquiagem da cidade, de urbanização e
cimentação de favelas, colorir barracos. Surgirão autênticos, eficazes projetos
habitacionais, bairros de verdade. Nada de Projetos como o Minha Casa Minha Vida, também conhecido Me Engana que eu Gosto ou Meu
Destino Minha Morte. Estão previstas obras e obras, recuperações e
modernizações, reformas e ampliações, reestruturações e sistematizações,
cometimentos que irão melhorar muito a vida dos cariocas e daqueles que nos
visitam. E, claro, o esporte nacional, profissional, amador, olímpico,
paraolímpico, oficial e marginal, todos vão se desenvolver. Até a purrinha e o jogo do bicho. Os jogos vão
atrair formidáveis investimentos privados em todas as áreas. Empregos e
salários irão se multiplicar. Renda e vida para todos. Seremos campeões em tudo.
Tudo irá melhorar. Não será mais como das outras vezes, das
milhares de outras vezes. Agora é diferente. É pra valer. Para o povo será uma
beleza! Nos lares, nas ruas, nas praças, nos hospitais, nas escolas, no
trabalho, no metrô, nos trens, nos ônibus, nos presídios, na praia, no mar, no
ar, no céu e na terra.
Florescerão a paz, o amor, a harmonia e a fraternidade em nossos corações. Até
o nosso humor carioca será mais carioca. Receberemos todos de braços abertos,
desarmados. Ninguém será assaltado e torturado, prometemos.
Não irá faltar mais Dipirona nos
hospitais públicos. Nem esparadrapo, nem antibiótico. Nem médicos, que terão
jornadas de trabalho possíveis e salários dignos. O raio X, o ultrassom e a
ressonância magnética existirão, funcionarão regularmente. E não estarão mais,
por meses e anos, quebrados, como o elevador e como sempre.
Nada
mais justo, necessário, urgente e edificante que uma Olimpíada.
Moral da história: Infeliz a cidade, desgraçado o país que para ter Dipirona nos seus hospitais públicos
implora a Deus e ao Mundo a realização de uma Olimpíada.
E
pior - cá entre nós - as Olimpíadas irão se realizar. E os hospitais vão
continuar sem Dipirona.
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