quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Corrupção verbal - Miséria cultural - Comunicação precária

(Foto: jornal Zero Hora)
A Língua e a Linguagem são sistemas socioculturais vivos, dinâmicos, flexíveis, mutáveis, móveis, mortais, territórios que a depender dos atos e fatos dos seus usuários, das ambiências onde prevalecem, dos percursos históricos que cumprem – oferecem um imponderável universo de possibilidades e variáveis, onde ocorrem muitos fenômenos com as palavras e locuções, sejam eles gráficos, orais e de significado. E, servem suficientemente, às exigências, atendem às demandas das sociedades que as praticam.

Por isto, não deve haver espanto quando vocábulos caem em desuso, mudam suas acepções, alteram suas grafias. As palavras, como as sociedades, falecem, outras permanecem, progridem, empalidecem, decaem. Muitas palavras alteram os seus significados originais, algumas mudam suas grafias e prosódias, outras se partem em duas ou se aglutinam. Enfim, ocorre uma vasta gama de movimentos, extinções, criação de neologismos, gírias, nascimentos, ressurreições, corrupções, corruptelas etc. Algumas línguas desaparecem, outras evoluem ou mínguam. Outras, ainda, se redesenham como sistemas, intrinsecamente. Muitas permanecem ágrafas por séculos. Tudo isto é normal, previsível, possível.

O que é inadmissível, condenável até, é superestimar, entronizar, tornar única uma nova acepção que uma palavra tome na linguagem coloquial, informativa e jornalística, um sentido diverso do original, passando-se a dar a esta nova acepção um valor supremo, absoluto, soberano, excludente, ignorando ou rejeitando aquele sentido original, clássico, exercido na escrita ou na fala culta da Língua. Explico: a palavra recebe um novo significado, o que é próprio da diacronia da linguagem, mas o sentido primeiro, etimologicamente primacial, é adredemente desprezado, desconhecido, até rejeitado. No Brasil, isto é comum, rotineiro, na pequena aldeia de bons cultores da própria Língua, na pequenez do saber linguístico. Daí, surgem a ignorância léxica, a pobreza vocabular ou o uso abusivo de lugares-comuns, a comunicação precária, deficiente, em todos os níveis, na oralidade e na escrita, da Arte Literária à interação doméstica, passando pela conversa da esquina, pela mídia, incluindo a Internet, pela Educação, o lugar do trabalho, o lazer, todos os ambientes.

Essas defecções são devidas à falência da qualidade nas escolas, ao não hábito da leitura, à renúncia à própria Cultura ou ao desajustamento cultural. A Língua é bela e rica, um patrimônio funcional, uma ferramenta eficiente. Porém, parte de seus falantes, geralmente algumas elites influentes e os profissionais da Comunicação, meus colegas jornalistas, por exemplo, são, em sua grande parte, linguisticamente pobres, indigentes linguísticos. Eis alguns exemplos:

Alguns exemplos de palavras prostituídas (significados corrompidos)

Radical – Do latim radix, raiz. O dicionário ensina: “Relativo ou pertencente à raiz ou à origem; que parte ou provem da raiz (...) fundamental, básico”. Diz-se de alguém, explicação ou idéia que vai às raízes das questões, aos seus fundamentos, às suas causas. A palavra teve o seu significado corrompido, tornou-se sinônimo de extremado, intolerante, irascível. Deformidade pura. Uma mãe radical é aquela que procura o motivo da febre do filho e dá o remédio para debelar a causa da febre. Já a mãe que não é radical aplica o medicamento apenas para aplacar os sintomas. Em vários países do mundo existem os “partidos radicais”, com ideologias profundas, programas sólidos, posições bem definidas. No Brasil, quando você quer desqualificar as idéias e opiniões de uma pessoa a chama de “radical”. Erro. O mundo, costumo dizer, se divide em duas classes de pessoas: os radicais, que são as pessoas sérias, profundas, que vão às causas dos fatos e fenômenos; e os levianos, superficiais, pueris.

Gênio e Genial – “No meu tempo”, diria, gênio ou genial eram, entre nós, Machado de Assis, Raul Pompeia, Pelé, Barão de Itararé, Ari Barroso, Portinari, Quintana, Villa-Lobos e outros poucos meninos. Lá fora, Stein, Picasso, Shakespeare, Rubens, Chopin, Michelangelo, Van Gogh, Dali, Cervantes, Da Vinci. O substantivo, que tem função adjetiva, e o próprio adjetivo, foram banalizados, deturpados. Ontem, meu vizinho me disse: “Minha faxineira é genial”. Um petista teve a coragem: “Lula é um gênio”. Aqui, no Rio, há cinquenta anos, “genial” virou “Geneal” e passou a ser a marca de um cachorro-quente vendido no Maracanã. Qualquer profissional mediano, isto é, medíocre, passou a ser genial. Um deboche à essência semântica da palavra.

Folclore – A ciência, sistematizada há mais de cem anos, com metodologia, princípios e objetivos próprios, reconhecida mundialmente, integrante do grupo das Ciências Sociais, que estuda todo o universo de manifestações anônimas, coletivas, tradicionais e autênticas do Povo, além do “popular” lato sensu; investiga as criações e permanências materiais e imateriais, à margem da lei, do institucionalizado, do livro, da escola formal, da academia, do Estado; todo o pensar, o saber, o sentir e o agir do Povo, a Verdade do Povo enfim; as soluções de vida e convívio do Povo, marginais ao oficialismo, alheias ao dirigismo estatal; o Folclore, esta ciência cujos atos e fatos de seu interesse estão em toda parte e lugar, onde vive o Homem e sua comunidade – incrivelmente, o Folclore foi transformado em chacota, sinônimo de brincadeirinha, de mentira. O Folclore, cujo seu maior sábio universal, é o brasileiro Luís da Câmara Cascudo. Quando alguém quer qualificar algo de falso, de não verdadeiro, sem consistência, que não seja sério, diz: “Isto é folclore”, ou seja, não tem importância, não é real. Quando se aponta um ato ou fato, cientificamente, como “folclórico”, há sempre um idiota para completar: “Então é falso...” Um atentado às ciências. Uma agressão ao saber.

Legado – Em tempos de Jogos Pan Americanos, de Copa do Mundo e de Olimpíadas, a palavra foi vulgarizada e corrompida. Legado, juridicamente, e assim aprendemos na Faculdade, é o que se transmite, valor ou bem, de uma pessoa a outra, geralmente num ato de última vontade. Os estádios e ginásios, que o mimetismo tolo, o macaquismo da mídia mais tola ainda, chama de “arenas” (vejam a estupidez de “paralimpíadas”), os locais de competição, as obras de infraestrutura, foram construídas com dinheiro público. Em algumas obras houve, sim, a participação privada. Mas essa participação teve incentivos, renúncia fiscal, ou a promessa aos investidores de concessão para sua exploração. Portanto, indiretamente, também foi dinheiro público que custeou. Então que legado é este em que o Povo deixa para o Povo, um ente deixa para o mesmo ente, para ele mesmo? Se uma pessoa física, empresa ou uma instituição privada qualquer deixa para o Povo, muito bem, teríamos a configuração de um verdadeiro legado. Mas não é o caso. Uma fraude verbal. Uma enganação política. O jurista Jorge Beja me chamou a atenção sobre esse engodo, que, também, sempre assim considerei.

Alguns exemplos de palavras apodrecidas (Miséria vocabular / lugares mais comuns que a corrupção política)

Complicado – A palavra serve pra tudo. De uma cirurgia no cérebro ao trânsito no final da tarde, passando pelo estuprador de uma criança de três anos. Falsa panacéia, torta e miserável.

Foco / Focar – A primeira palavra foi grafada pela primeira vez por Antonio da Cruz, em 1601, na sua acepção original, no clássico Recopilação da Cirurgia. A acepção ótica veio no século seguinte. A segunda – “focar” – foi dicionarizada no final do Novecentos. Até 1970, “foco” ou “em foco” foi uma febre nos títulos de jornal, revista, informativo, boletim, programas de rádio e de TV: “Notícias em foco”, “Sindicato em foco” etc. A partir da década de 1970, as palavras viraram clichê, lugar-comum, sinal de pobreza verbal e eram evitadas. Apenas os fotógrafos e cinegrafista a utilizavam tecnicamente. Por outro lado, “focalizar” continuou a ser usada apropriadamente. Há dois anos, as duas palavras voltaram, epidemicamente, à língua falada e escrita, em especial na mídia. Porém, não como títulos de veículos, mas para substituir “alvo”, “meta”, “objetivo” e “concentrar-se”, “direcionar”, “ter como objetivo ou meta ou alvo”, respectivamente. Uma moda pobre, gasta, uma má ressurreição, que mitiga o nosso patrimônio léxico.

Legal e Muito legal / Bacana e Muito bacana – Na década de 1950, eram gírias, que “nas melhores famílias” deveriam ser evitadas. Mas, logo, virou expressão, impressão, exclamação que ultrapassou o coloquial e conquistou outras linguagens. Por volta, também, de 1970, era “cafona”, “brega”, arcaico, até ridículo, usar os adjetivos. Reviveram. Atualmente, até gente que posa de “culta”, aplica os adjetivos indiscriminadamente, a qualquer atitude, fato ou objeto, substituindo dezenas de outros que poderiam ser usados mais apropriadamente, a cada caso específico. O trágico não é usar essas palavras ressuscitadas. Isto é saudável, mostra vitalidade, alternativas da Língua. Deplorável é transformá-las em única opção numa suposta seleção léxica, antes mental, pois pensamos com palavras. Os adjetivos servem pra tudo. E só eles. A nossa fortuna léxica não existe.



Vamos combinar / esqueceu de combinar com – Locuções que reduzem um pensamento, eliminam uma crítica inteira. O verbo “combinar” está dicionarizado desde o Século XVII, pode e deve ser falado e escrito, enriquecido com novas acepções. Porém integrá-lo a uma locução visando a empobrecer a linguagem, abreviar injustificadamente um discurso, amputar raciocínios? Creio não ser bom para o falante, para o ouvinte, para o leitor, para a Língua Portuguesa falada no Brasil.



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