(Foto: jornal Zero Hora) |
A Língua e a Linguagem são sistemas socioculturais vivos,
dinâmicos, flexíveis, mutáveis, móveis, mortais, territórios que a depender dos
atos e fatos dos seus usuários, das ambiências onde prevalecem, dos percursos
históricos que cumprem – oferecem um imponderável universo de possibilidades e
variáveis, onde ocorrem muitos fenômenos com as palavras e locuções, sejam eles
gráficos, orais e de significado. E, servem suficientemente, às exigências, atendem
às demandas das sociedades que as praticam.
Por isto, não deve haver espanto quando vocábulos
caem em desuso, mudam suas acepções, alteram suas grafias. As palavras, como as
sociedades, falecem, outras permanecem, progridem, empalidecem, decaem. Muitas palavras
alteram os seus significados originais, algumas mudam suas grafias e prosódias,
outras se partem em duas ou se aglutinam. Enfim, ocorre uma vasta gama de movimentos,
extinções, criação de neologismos, gírias, nascimentos, ressurreições, corrupções,
corruptelas etc. Algumas línguas desaparecem, outras evoluem ou mínguam. Outras,
ainda, se redesenham como sistemas, intrinsecamente. Muitas permanecem ágrafas
por séculos. Tudo isto é normal, previsível, possível.
O que é inadmissível, condenável até, é
superestimar, entronizar, tornar única uma nova acepção que uma palavra tome na
linguagem coloquial, informativa e jornalística, um sentido diverso do original,
passando-se a dar a esta nova acepção um valor supremo, absoluto, soberano,
excludente, ignorando ou rejeitando aquele sentido original, clássico, exercido
na escrita ou na fala culta da Língua. Explico: a palavra recebe um novo
significado, o que é próprio da diacronia da linguagem, mas o sentido primeiro,
etimologicamente primacial, é adredemente desprezado, desconhecido, até
rejeitado. No Brasil, isto é comum, rotineiro, na pequena aldeia de bons
cultores da própria Língua, na pequenez do saber linguístico. Daí, surgem a
ignorância léxica, a pobreza vocabular ou o uso abusivo de lugares-comuns, a
comunicação precária, deficiente, em todos os níveis, na oralidade e na
escrita, da Arte Literária à interação doméstica, passando pela conversa da
esquina, pela mídia, incluindo a Internet, pela Educação, o lugar do trabalho, o
lazer, todos os ambientes.
Essas defecções são devidas à falência da qualidade
nas escolas, ao não hábito da leitura, à renúncia à própria Cultura ou ao
desajustamento cultural. A Língua é bela e rica, um patrimônio funcional, uma
ferramenta eficiente. Porém, parte de seus falantes, geralmente algumas elites
influentes e os profissionais da Comunicação, meus colegas jornalistas, por
exemplo, são, em sua grande parte, linguisticamente pobres, indigentes linguísticos.
Eis alguns exemplos:
Alguns exemplos de palavras prostituídas
(significados corrompidos)
Radical
– Do latim radix, raiz. O dicionário
ensina: “Relativo ou pertencente à raiz ou à origem; que parte ou provem da
raiz (...) fundamental, básico”. Diz-se de alguém, explicação ou idéia que vai
às raízes das questões, aos seus fundamentos, às suas causas. A palavra teve o
seu significado corrompido, tornou-se sinônimo de extremado, intolerante,
irascível. Deformidade pura. Uma mãe radical é aquela que procura o motivo da
febre do filho e dá o remédio para debelar a causa da febre. Já a mãe que não é
radical aplica o medicamento apenas para aplacar os sintomas. Em vários países
do mundo existem os “partidos radicais”, com ideologias profundas, programas
sólidos, posições bem definidas. No Brasil, quando você quer desqualificar as
idéias e opiniões de uma pessoa a chama de “radical”. Erro. O mundo, costumo
dizer, se divide em duas classes de pessoas: os radicais, que são as pessoas
sérias, profundas, que vão às causas dos fatos e fenômenos; e os levianos,
superficiais, pueris.
Gênio e Genial – “No meu tempo”, diria, gênio
ou genial eram, entre nós, Machado de Assis, Raul Pompeia, Pelé, Barão de
Itararé, Ari Barroso, Portinari, Quintana, Villa-Lobos e outros poucos meninos.
Lá fora, Stein, Picasso, Shakespeare,
Rubens, Chopin, Michelangelo, Van Gogh, Dali, Cervantes, Da Vinci. O
substantivo, que tem função adjetiva, e o próprio adjetivo, foram banalizados,
deturpados. Ontem, meu vizinho me disse: “Minha faxineira é genial”. Um petista
teve a coragem: “Lula é um gênio”. Aqui, no Rio, há cinquenta anos, “genial”
virou “Geneal” e passou a ser a marca de um cachorro-quente vendido no
Maracanã. Qualquer profissional mediano, isto é, medíocre, passou a ser genial.
Um deboche à essência semântica da palavra.
Folclore
– A ciência, sistematizada há mais de cem anos, com metodologia, princípios e
objetivos próprios, reconhecida mundialmente, integrante do grupo das Ciências
Sociais, que estuda todo o universo de manifestações anônimas, coletivas, tradicionais
e autênticas do Povo, além do “popular” lato
sensu; investiga as criações e permanências materiais e imateriais, à
margem da lei, do institucionalizado, do livro, da escola formal, da academia,
do Estado; todo o pensar, o saber, o sentir e o agir do Povo, a Verdade do Povo
enfim; as soluções de vida e convívio do Povo, marginais ao oficialismo, alheias
ao dirigismo estatal; o Folclore, esta ciência cujos atos e fatos de seu
interesse estão em toda parte e lugar, onde vive o Homem e sua comunidade – incrivelmente,
o Folclore foi transformado em chacota, sinônimo de brincadeirinha, de mentira.
O Folclore, cujo seu maior sábio universal, é o brasileiro Luís da Câmara
Cascudo. Quando alguém quer qualificar algo de falso, de não verdadeiro, sem
consistência, que não seja sério, diz: “Isto é folclore”, ou seja, não tem importância,
não é real. Quando se aponta um ato ou fato, cientificamente, como “folclórico”,
há sempre um idiota para completar: “Então é falso...” Um atentado às ciências.
Uma agressão ao saber.
Legado –
Em tempos de Jogos Pan Americanos, de Copa do Mundo e de Olimpíadas, a palavra
foi vulgarizada e corrompida. Legado, juridicamente, e assim aprendemos na
Faculdade, é o que se transmite, valor ou bem, de uma pessoa a outra,
geralmente num ato de última vontade. Os estádios e ginásios, que o mimetismo
tolo, o macaquismo da mídia mais tola ainda, chama de “arenas” (vejam a
estupidez de “paralimpíadas”), os
locais de competição, as obras de infraestrutura, foram construídas com
dinheiro público. Em algumas obras houve, sim, a participação privada. Mas essa
participação teve incentivos, renúncia fiscal, ou a promessa aos investidores de
concessão para sua exploração. Portanto, indiretamente, também foi dinheiro
público que custeou. Então que legado é este em que o Povo deixa para o Povo,
um ente deixa para o mesmo ente, para ele mesmo? Se uma pessoa física, empresa
ou uma instituição privada qualquer deixa para o Povo, muito bem, teríamos a
configuração de um verdadeiro legado. Mas não é o caso. Uma fraude verbal. Uma
enganação política. O jurista Jorge Beja me chamou a atenção sobre esse engodo,
que, também, sempre assim considerei.
Alguns exemplos de palavras
apodrecidas (Miséria vocabular / lugares mais comuns que a corrupção
política)
Complicado
– A palavra serve pra tudo. De uma cirurgia no cérebro ao trânsito no final da
tarde, passando pelo estuprador de uma criança de três anos. Falsa panacéia,
torta e miserável.
Foco / Focar
– A primeira palavra foi grafada pela primeira vez por Antonio da Cruz, em
1601, na sua acepção original, no clássico Recopilação
da Cirurgia. A acepção ótica veio no século seguinte. A segunda – “focar” –
foi dicionarizada no final do Novecentos. Até 1970, “foco” ou “em foco” foi uma
febre nos títulos de jornal, revista, informativo, boletim, programas de rádio
e de TV: “Notícias em foco”, “Sindicato em foco” etc. A partir da década de
1970, as palavras viraram clichê, lugar-comum, sinal de pobreza verbal e eram evitadas.
Apenas os fotógrafos e cinegrafista a utilizavam tecnicamente. Por outro lado,
“focalizar” continuou a ser usada apropriadamente. Há dois anos, as duas
palavras voltaram, epidemicamente, à língua falada e escrita, em especial na
mídia. Porém, não como títulos de veículos, mas para substituir “alvo”, “meta”,
“objetivo” e “concentrar-se”, “direcionar”, “ter como objetivo ou meta ou alvo”,
respectivamente. Uma moda pobre, gasta, uma má ressurreição, que mitiga o nosso
patrimônio léxico.
Legal e Muito legal / Bacana e Muito bacana – Na
década de 1950, eram gírias, que “nas melhores famílias” deveriam ser evitadas.
Mas, logo, virou expressão, impressão, exclamação que ultrapassou o coloquial e
conquistou outras linguagens. Por volta, também, de 1970, era “cafona”,
“brega”, arcaico, até ridículo, usar os adjetivos. Reviveram. Atualmente, até
gente que posa de “culta”, aplica os adjetivos indiscriminadamente, a qualquer
atitude, fato ou objeto, substituindo dezenas de outros que poderiam ser usados
mais apropriadamente, a cada caso específico. O trágico não é usar essas
palavras ressuscitadas. Isto é saudável, mostra vitalidade, alternativas da
Língua. Deplorável é transformá-las em única opção numa suposta seleção léxica,
antes mental, pois pensamos com palavras. Os adjetivos servem pra tudo. E só
eles. A nossa fortuna léxica não existe.
Vamos combinar
/ esqueceu de combinar com – Locuções que reduzem um pensamento, eliminam
uma crítica inteira. O verbo “combinar” está dicionarizado desde o Século XVII,
pode e deve ser falado e escrito, enriquecido com novas acepções. Porém
integrá-lo a uma locução visando a empobrecer a linguagem, abreviar
injustificadamente um discurso, amputar raciocínios? Creio não ser bom para o
falante, para o ouvinte, para o leitor, para a Língua Portuguesa falada no
Brasil.
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